Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek *
“Todo fundamentalista é conservador, mas nem todo conservador é fundamentalista” (Harry Emerson Fosdick)
Devolução da MP do Ministério da Fazenda. Ataque especulativo sobre o dólar. Armínio Fraga, ex-convertido a uma economia social, ao que tudo indica voltou para seu castelo rentista de onde passou a criticar o governo federal. Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, em uma noite no Palácio Bandeirantes (sede do governo paulista) sofre uma amnésia que o leva a ter uma confusão de identidade: esquece da autonomia do Banco Central, ao mesmo tempo em que incorpora o caráter de Sergio Moro, juiz da Lava Jato que aceita ser ministro da Justiça do governo cuja eleição em parte se deveu ao impedimento da candidatura Lula em 2018. Soma-se a isso o ataque aos principais influenciadores de esquerda, os quais são nivelados por parte da grande mídia como sendo o equivalente, mas com sinal trocado, do chamado “gabinete do ódio” e seu derrame de fake news. Colunistas de renome disparando informações não verificadas sobre a alta cúpula do governo. Leilão do arroz com equívocos de principiantes, trazendo mais uma vez a sombra da corrupção sobre o governo do PT. Entre tantos outros eventos, ataques, a votação para regime de urgência do PL 1904, batizado de PL do Estuprador.
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É muita coisa para pouco tempo. Há uma semeadura de desconfiança no governo, ao mesmo tempo em que acordos são celebrados em jantares. A mistura final seria o apelo das ruas: o deputado Sóstenes Cavalcante, patrono maior do PL 1904, confirmou em entrevista que seu maior interesse com este projeto de lei era tirar o presidente Lula do seu lugar e colocá-lo nas “cordas”. Não duvido que a oposição mais estridente, porque mais extremista, não sonhava com o povo ganhando as ruas para condenar o “abortista” Lula. Formaria aqui a trinca perfeita para o fomento de um novo golpe, o qual concederia a este país o título de “República das Bananas”.
Todavia, ao que tudo indica, o tiro de misericórdia saiu pela culatra justamente pela ausência de compaixão presente no PL 1904. Sóstenes foi esfregado no programa Estúdio I, na tarde de 17 de junho de 2024, por uma bancada bem preparada e pelo eloquente pastor Henrique Vieira (Psol-RJ). As contradições, as inconsistências, a ausência de vestígios do Evangelho de Jesus, foram expostas.
Sóstenes, que diante da primeira reação da opinião pública endureceu ainda mais o discurso (queria aumentar a pena da mãe que faz o aborto após a 22ª semana de gravidez para 30 anos de prisão) esqueceu de dois aspectos fundamentais:
a) primeiro, que a figura do estuprador, ainda mais quando a violência é cometida contra uma criança, contra um vulnerável, é mais assustadora para o evangélico médio do que o aborto em si;
b) em segundo lugar, ele esqueceu de que a maior parte da composição e da força de engajamento nas igrejas evangélicas é de mulheres. Ao criminalizar a mulher violentada com o dobro da pena do estuprador, Sóstenes e sua claque se isolaram, alcançando êxito somente para os extremistas religiosos, os fundamentalistas e adeptos da Teologia do Domínio. Aliás, para esta última o aborto é um dos temas “apito de cachorro”.
Sóstenes prestou um serviço para a sociedade brasileira. Não falo do PL 1904; mas sim da clara distinção, da linha divisória bem demarcada que foi estabelecida entre conservadores e fundamentalistas, entre conservadores e extremistas religiosos. Foi muito bom para a parte laica da sociedade brasileira constatar que os extremistas religiosos, assim como os extremistas políticos, fazem barulho, mas são minoria. Sim, o fundamentalismo e o fascismo podem ser vencidos! Foi esse o gosto que ficou em nossa boca: o da vitória.
Não há outra forma de terminar este texto que não seja agradecer ao deputado Sóstenes Cavalcante por esta vitória. Agradecer por ele não ter recuado, aos moldes de Roboão (I Reis 12). Agradecer por patentear o que venho dizendo há tempos, inclusive aqui (nas colunas do Observatório Evangélico): os fundamentalistas são uma minoria que costumam captar e cooptar os conservadores através das polêmicas pautas-limite, ou pautas-bomba.
Esqueçamos os fundamentalistas, entregando-os à sua própria sorte. Voltemo-nos para os conservadores onde há vigorosos traços de bom senso e de disposição para o diálogo. Eis aí o campo de ação do governo no tocante ao movimento evangélico.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
* Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é mestre e doutor em Ciência da Religião (UFJF); pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-MG); pesquisador em Estágio de Pós-Doutorado pela UEMS (Bolsista Capes); pastor na Igreja Batista Marapendi (Rio de Janeiro); professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção, e co-organizador de Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas; e A Noiva sob o Véu: Novos Olhares sobre a participação dos evangélicos nas eleições de 2022.
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