Tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, incitação à violência contra os ministros da Suprema Corte, incitação à animosidade entre as Forças Armadas e o Supremo Tribunal Federal (STF). Por esses e outros crimes, o deputado Daniel Lucio da Silveira, natural de Petrópolis, no Rio de Janeiro, foi condenado a oito anos e nove meses de cadeia pelo plenário do Supremo em 20 de abril.
A condenação se deu no quarto ano de seu primeiro mandato como deputado federal pelo mesmo estado onde nasceu. Durante o julgamento, um fato chamou a atenção dos ministros Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia: Daniel Silveira (PTB-RJ) não era julgado por uma ação isolada. Ataques à democracia e à Suprema Corte configuram um comportamento recorrente ao longo de seu mandato como parlamentar.
Ataques verbais, e em alguns casos físicos, a instituições e pessoas que o desagradam se tornaram uma marca registrada de seu mandato. A postura agressiva e o discurso antagônico à ordem democrática, porém, são características que antecipam a sua carreira política.
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De policial a deputado
Antes de ser candidato a deputado, Daniel Silveira fez sua fama nas redes sociais durante os anos em que serviu à Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro (PMERJ), onde foi incorporado a partir de 2013. Antes disso, era cobrador de ônibus, função que, em 2007, lhe rendeu um boletim de ocorrência na Polícia Civil em Petrópolis. A polícia havia descoberto seu envolvimento em uma fraude na produção de atestados médicos, que foram utilizados para se ausentar por um mês do serviço.
O boletim de ocorrência chegou a atrasar em dois anos sua entrada na polícia, onde foi aprovado em concurso em 2011. Sua efetivação se deu apenas mediante a entrada de processo administrativo na Justiça do Rio de Janeiro. Em 2016, prescreveu o inquérito envolvendo a fraude de atestados, o que permitiu sua efetivação na PMERJ.
Sua atuação como policial não foi menos problemática do que o capítulo anterior de sua vida. Em seu próprio canal no Youtube, confessou ter sido preso ao menos 90 vezes durante sua carreira como policial. Segundo um boletim interno da PMERJ vazado pelo portal The Intercept, 80 dessas prisões e detenções ocorreram entre os anos de 2013 e 2017, tendo ocorrido por episódios de insubordinação.
O documento indica como “cristalina sua inadequação ao serviço militar, mesmo tendo recebido inúmeras oportunidades, confirmando ineficiência do caráter educativo”. Ainda aponta para o seu primeiro episódio conhecido de ataques à imprensa. “Fica transparente (…) a conduta desviante do revisionado, na medida em que postou vídeos em sua página pessoal da rede social Facebook, em desfavor da imprensa nacional de uma forma geral, em alguns deles durante a execução do serviço, fardado e no interior da viatura, erodindo preceitos éticos em vigor na Polícia Militar”.
Ao final de 2017, em meio à sua carreira de desvios, Daniel Silveira começou a reforçar suas aparições na internet, tentando moldar a sua imagem de defensor dos policiais militares. No ano em questão, estava alocado no 15º Batalhão de Polícia Militar, no município de Duque de Caxias. Tratava-se do segundo batalhão de maior letalidade no estado do Rio de Janeiro, totalizando ao menos 89 vítimas entre janeiro e dezembro.
O comandante do batalhão, Sergio Porto, foi flagrado incentivando seus subordinados a continuar agindo de forma violenta. Daniel Silveira não demorou para se pronunciar em sua defesa. “Para mim, é bom. Quanto mais bandidos forem presos ou mortos, melhor para mim. (…) O tenente-coronel Porto nada menos é do que um policial herói. (…) Eu garanto a você que a maioria dos cidadãos de bem aplaudem o coronel Porto pelo que ele está fazendo”, declarou em seu canal no Youtube. Anos depois, confessou em entrevista à revista Piauí ter matado ao menos 12 pessoas durante seu serviço à PMERJ.
No mesmo vídeo, atacou os veículos de imprensa que noticiaram o vazamento das mensagens em que Porto comemorava o elevado número de mortes em ações policiais de seu batalhão. “Me vem a Rede Globo, com aquele sensacionalismo barato, aqueles repórteres baratos, (…) para tentar dizer que ele incentiva a morte, que ele incentiva que policiais matem. (…) Rede Globo é uma porcaria de emissora, William Bonner é uma porcaria de repórter, e tantos outros são iguais”, declarou. No mesmo vídeo, relatou já ter respondido para a corregedoria da PMERJ por ataques verbais à emissora.
O crescimento de seu alcance nas redes sociais coincidiu com o início da campanha presidencial de Jair Bolsonaro (na época, no PSL), criando terreno fértil para que entrasse na disputa eleitoral. Durante as eleições, ocorreu o fato que o alavancou nas pesquisas: junto ao candidato a deputado estadual Rodrigo Amorim e ao candidato a governador Wilson Witzel, Daniel Silveira partiu ao meio uma placa em homenagem à falecida vereadora Marielle Franco na praça da Cinelândia. A foto do ocorrido explodiu na internet, e garantiu sua vitória pelo PSL.
Agressividade no parlamento
Uma vez eleito, não demorou para Daniel Silveira deixar o recado de como seria seu mandato. Faltando mais de um mês para sua posse, entrou sem autorização da diretoria no Colégio D. Pedro II, em Petrópolis, tumultuando a entrada da unidade. O deputado afirmou estar lá para debater a distribuição de emendas parlamentares. A diretora, Andréa Nunes, já afirmou que sequer conhecia o aspirante a parlamentar, e nunca o convidou.
Insatisfeito com o incidente, Silveira divulgou um vídeo em seu perfil no Facebook afirmando que, como parlamentar, teria o direito de entrar em qualquer ambiente sem ter permissão. Disse que retornaria, com o intuito de fiscalizar o colégio em busca de provas de “doutrinação ideológica”, e que era hostilizado por Andréa Nunes não por conta de sua intromissão, mas sim por conta de sua “vertente conservadora que combate a ideologia socialista comunista”.
Somente em fevereiro de 2022 que Daniel Silveira respondeu por seu abuso de autoridade e pelas diversas ofensas lançadas contra a diretora. O Tribunal de Justiça de Petrópolis o condenou a pagar uma indenização de R$ 20 mil a Andréa Nunes, bem como a remover o vídeo do ar e pagar R$ 4 mil em custos processuais.
Depois de empossado, Daniel Silveira novamente buscou uma intriga: desta vez contra seus próprios colegas de partido. Em seu primeiro discurso em plenário, declarou que observaria o comportamento de todos os demais parlamentares do PSL, afirmando que a legenda contava com um grande número de deputados que se aproveitaram da popularidade de Bolsonaro para subir ao poder. “Muita gente veio na onda PSL, uma onda mentirosa. Pensam que estão acima de todos, e não estão. Estamos observando”, concluiu.
A partir de outubro, seu temperamento violento tornou a ocupar as páginas do noticiário. Desta vez, não por seu discurso, mas por sua ação. No Anexo II da Câmara dos Deputados, o jornalista Guga Noblat o questionou sobre as “vistorias” ao Colégio D. Pedro II e sobre o vandalismo envolvendo a placa em homenagem a Marielle Franco. Em resposta, Daniel Silveira arremessou o celular do repórter no chão e o xingou. “Arremessei, e aí irmão? (…) Te bati, babaca. Vai lá no STF e me processa, otário”, declarou durante o episódio. A agressão, por sinal, foi filmada por outras pessoas presentes no anexo e um dos vídeos capturou o momento em que o celular quicou no chão.
Guga Noblat chegou a abrir processo na justiça contra Daniel Silveira pela agressão. O caso foi julgado no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), onde o relator Edilson Enedino das Chagas considerou que faltava comprovação do dano causado ao celular, além de culpabilizar o jornalista pelo ocorrido, afirmando que a postura violenta teria sido consequência de provocações contra o deputado.
Fake news e atos antidemocráticos
Em abril de 2020, em meio aos primeiros casos da covid-19 no Brasil, uma série de manifestações ganharam espaço em Brasília, pedindo a implementação de um novo AI-5 (decreto do regime militar que suspendia liberdades civis) e uma intervenção militar em resposta à implementação nos governos estaduais de medidas de isolamento social e fechamento do comércio para impedir o avanço da doença.
Os atos, que também levantavam cartazes e palavras de ordem contra o funcionamento do STF e contra o mandato do até então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, receberam amplo apoio do presidente Jair Bolsonaro e de parte de seus aliados. Entre eles, Daniel Silveira. Não demorou para que a Procuradoria-Geral da República (PGR) instaurasse um inquérito para investigar quem financiava esses atos, e o deputado estava entre os investigados.
No decorrer da investigação, outro fato chamou a atenção da PGR e do STF: no Congresso Nacional, a chamada CPMI das Fake News percebeu indícios de vínculo entre os atos antidemocráticos e a produção de disparos em massa de mensagens e publicações nas redes sociais de notícias falsas buscando prejudicar opositores a Jair Bolsonaro. O relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, arquivou o inquérito dos atos antidemocráticos e abriu um novo inquérito para investigar a máquina de fake news.
Prisão em exercício
Em meio a um cerco judicial decorrente do inquérito das Fake News, Daniel Silveira aumentou a frequência dos ataques ao STF em suas redes sociais: a Suprema Corte passou a ser seu assunto preferido em seus vídeos no Youtube, competindo apenas com ataques direcionados ao governador de São Paulo, João Doria, uma das vozes antagônicas ao governo Bolsonaro.
Sua produção de vídeos atacando rivais do governo durou até 15 de fevereiro de 2021, quando o ministro Edson Fachin criticou o ex-comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, por conta da pressão realizada por este no julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, decisão da suprema corte que o afastou da corrida presidencial em 2018.
Se até então os ataques de Daniel Silveira aos ministros do STF se limitavam a ofensas, a partir dali ele já passava a falar em violência contra os magistrados. Ao ministro Edson Fachin, disse em seu canal que “qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada nessa sua cara com um gato morto até ele miar, de preferência, após cada refeição, não é crime”. Ainda disse que “várias e várias vezes já te imaginei tomando uma surra”, e que não seria crime premeditar a violência contra ele ou aos demais ministros.
No dia seguinte, Alexandre de Moraes determinou sua prisão preventiva em flagrante delito. Esta seria apenas a sua primeira prisão enquanto deputado, e o início da ação penal que resultou, um ano depois, em sua condenação no plenário da Suprema Corte.
Ação penal
O vídeo com as sucessivas incitações à violência contra o STF foi apagado do Youtube, e por ordem judicial, Daniel Silveira passou os meses seguintes no decorrer do processo proibido de falar com a imprensa e de se manifestar nas redes sociais. As restrições legais, porém, não o impediram de protagonizar novos episódios de conflito com o Supremo. Desta vez passou a atacar nominalmente o ministro Alexandre de Moraes.
Sua prisão preventiva se encerrou no dia 14 de março de 2021, quando foi substituída por uma prisão em regime domiciliar, com o uso de tornozeleira eletrônica. No dia 24 de junho, tentou romper o lacre da tornozeleira, ficando novamente preso até o mês de novembro, quando foi solto e autorizado a falar novamente com a imprensa, mas ainda impedido de produzir conteúdo nas redes sociais e de participar de eventos.
Em março de 2022, Daniel Silveira violou sua restrição, participando de um evento político junto ao deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) no Paraná, onde novamente se pronunciou atacando o STF. Desta vez não foi preso, mas Alexandre de Moraes determinou que voltasse a utilizar tornozeleira eletrônica, e restringiu seu trânsito para os estados do Rio de Janeiro e Distrito Federal.
Desta vez, Daniel Silveira subiu à tribuna para dizer que não cumpriria a decisão judicial. E para escapar da determinação, refugiou-se na Câmara dos Deputados, alternando entre seu gabinete e o plenário da Casa, fora da jurisdição da Polícia Federal. O desafio ao judiciário durou pouco: no dia seguinte, Alexandre de Moraes determinou uma multa de R$ 15 mil por dia de descumprimento, levando o deputado a mudar de ideia.
Julgamento
Daniel Silveira evitou falar em público até o dia de seu julgamento no STF, no último dia 20. A decisão foi, por 10 votos a 1, pela condenação. O único ministro que votou pela sua absolvição foi o ministro Nunes Marques, um dos dois magistrados indicados por Jair Bolsonaro e revisor do processo. Até mesmo André Mendonça, nome indicado pela ala ideológica do governo, votou pela condenação.
Daniel Silveira preferiu assistir de longe o julgamento. Enquanto os ministros se organizavam no plenário para dar início à leitura do relatório e de seus respectivos votos, o deputado saía de Brasília, e partia em direção à sua casa, em Petrópolis. Minutos antes, porém, novamente se pronunciou pelo fechamento do STF. No dia seguinte, sua pena foi anulada por Jair Bolsonaro, que lhe concedeu graça constitucional.
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