Graziella Testa, pesquisadora de mão-cheia e jurada da edição deste ano do #Prêmio CongressoemFoco, antecipou pra gente um pedaço da coisa aqui. Mas a pesquisa que ela e outros dois cientistas políticos, Bruno Bolognesi e Lara Mesquita, fizeram sobre o Centrão foi bem além da survey cujos resultados ela adiantou, na coluna do Legis-Ativo.
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Trato aqui daquilo que me soou como as partes mais suculentas do trabalho, agora já publicado na íntegra pela revista acadêmica Caderno CRH, da Universidade Federal da Bahia (UFBA): a recuperação histórica desse agrupamento político peculiar e a análise individual dos congressistas vinculados ao Centrão quanto a aspectos como herança política e vivência e lealdade partidárias.
São dados preciosos porque toda hora ouvimos falar e falamos de Centrão, mas é bastante difícil identificá-lo tanto conceitualmente quanto na prática. É complicado até mesmo determinar com precisão seus rastros partidários, já que, dependendo da votação, o grupo que hoje tem em Arthur Lira sua mais vistosa liderança chegou a arrastar consigo parlamentares de quase todos os partidos.
Daí a importância das informações anteriormente divulgadas neste site. Bruno, Graziella e Lara enviaram questionários a 539 cientistas políticos perguntando que partidos políticos, em sua visão, compõem o Centrão. Com as respostas de 379 deles, descobriram que os partidos mais associados ao Centrão são, em ordem decrescente, PP, Republicanos, PL, PTB (que se juntou ao Patriota e virou PRD), MDB, União Brasil, Podemos, PSD e Avante.
Cruzando dados de atuação legislativa e comportamento eleitoral, os pesquisadores chegaram a quatro partidos que representam o que poderíamos chamar de “núcleo duro” do Centrão (expressão que não é deles, mas tomo a liberdade de usar aqui). São eles: PSD, Podemos, PP e Republicanos.
Uma análise do perfil individual dos membros do Centrão apontou características muito interessantes. Resumidamente, é possível dizer que eles são:
Publicidade- mais frequentemente herdeiros de outros políticos (28,3% deles, contra 20,1% dos demais deputados;
- possuem menos vínculos com entidades associativas, tais como sindicatos, igrejas e ONGs (47,7% a 57,6%);
- ocuparam menos cargos de direção partidária (29,6% x 36,9%); e
- estiveram em maior número de partidos antes de chegarem ao Congresso (média de 2,05 contra 1,67).
Falamos, portanto, de “parlamentares com lealdade menor às legendas das quais faziam parte, ainda que se possa afirmar que lealdade partidária não seja um traço forte do sistema político brasileiro”, destacam os autores.
Notável que esses deputados tenham chegado ao centro do poder estabelecendo uma proporção menor de lealdades com os partidos pelos quais passaram. Já no Parlamento, apenas 9% dos deputados do Centrão atuaram em algum momento como lideranças de suas bancadas partidárias, enquanto os deputados dos demais partidos fora do bloco foram líderes das bancadas de seus partidos em 18,8% das vezes” — prosseguem eles.
Livres para negociar
A pesquisa também quantificou as liberações de bancada na Câmara dos Deputados ao longo de duas décadas, de 1989 a 2019. É um indicador importante, que revela o grau de coesão partidária nas chamadas votações nominais. Isto é, naquelas em que o congressista vota individualmente — ao contrário do que ocorre por exemplo nas votações simbólicas, nas quais líderes votam por liderados. Havendo menos concordância interna quanto aos temas em debate, maior a tendência a liberar parlamentares a votarem como bem entenderem. Liberar mais a bancada também pode apontar maior disponibilidade para o fisiologismo, ou seja, para a troca do voto por algum tipo de benefício direto (cargos, recursos e outros favores).
Bastante esclarecedor o resultado desse levantamento, resumido no gráfico abaixo.
Média de liberação de bancada nos partidos (1989-2019)
Interessante notar, como ressaltam os pesquisadores, que o percentual de liberações de bancadas aumenta a partir de 2007, após o Supremo Tribunal Federal (STF) restringir as possibilidades de mudança de partido político. Desde então aumentou o risco de perda do mandato em caso de migração partidária, ante a vitória no STF da máxima de que, em se tratando de eleições proporcionais (como as de deputados e vereadores), “o mandato pertence ao partido”. De 1999 a 2006, revela o trabalho, a taxa de liberação ficou ao redor de 2%. A partir de 2007, nunca esteve abaixo de 4%, atingindo o seu ápice entre 2011 e 2014, quando se aproximou de 8%.
Pontuam os pesquisadores que o Congresso aprovou, a partir de 2017, várias mudanças legais para “minimizar a esfera de atuação dos pequenos partidos”. A mais importante delas foi a Emenda Constitucional 97, que proibiu as coligações em eleições proporcionais e estabeleceu uma cláusula de desempenho eleitoral mínimo (a famosa cláusula de barreira) para que os partidos tivessem acesso ao fundo partidário e ao horário de propaganda no rádio e na TV.
Resultado: “Os pequenos partidos do Centrão perderam com a reforma de 2017. Já os partidos médios parecem ter herdado o legado dos pequenos que deixaram de receber recursos. (…) Dentre os partidos classificados como Centrão – PP, PSD, Republicanos e Podemos –, somente o Podemos não viu sua bancada crescer no período. (…) A reforma de 2017 pode ter diminuído o número de pequenos partidos de comportamento parlamentar fisiológico, mas concentrou recursos e poder em partidos médios com comportamento semelhante.”
História e conceito
Quem deu origem à articulação parlamentar que terminaria ficando conhecida como Centrão foi um grupo de deputados de perfil até hoje típico dos integrantes do agrupamento. Liberal na teoria, fisiológico na conduta. O grupo, surgido durante os trabalhos da Constituinte de 1987 e 1988, era capitaneado pelo deputado paulista Roberto Cardoso Alves, que atacava o poder excessivo dos líderes partidários, uma suposta tendência esquerdizante nos rumos da Constituição então em obras, defendendo a troca do voto pela concessão de favores políticos por parte do governo. Robertão, como ele era conhecido, explicava com algum deboche que se inspirava em São Francisco: “É dando que se recebe”.
Alertam os autores, contudo, que o Centrão adquiriu nova configuração a partir de 2010 e, mais ainda, depois da ascensão de Eduardo Cunha à presidência da Câmara dos Deputados, em 2015. É o que eles chamam de Centrão 2.0, ainda mais fisiológico e menos comprometido com a agenda econômica liberal. Se antes o Centrão era a reunião daqueles que se julgavam na periferia do poder, a partir de Eduardo Cunha ele se torna — e aqui a afirmação é por minha conta e risco — a expressão maior do poder parlamentar, com controle sobre a pauta legislativa, cargos federais e, cada vez mais, emendas orçamentárias. E, agora sim, nas palavras dos autores:
“O que vemos é uma mudança no sentido da atomização do papel dos partidos políticos como principais interlocutores com o governo e uma agenda baseada exclusivamente em benefícios egoístas para os parlamentares individuais” — afirmam os pesquisadores.
“É o descontentamento da base parlamentar aglutinada em torno de Cunha, o principal motor do centrão em busca de cargos e verbas que conduz o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. O Centrão se torna um ator institucional mais uma vez suprapartidário e disperso no Parlamento. Ainda que alguns partidos, como veremos mais adiante, pareçam estar mais alinhados ao bloco do que outros, é na fragilidade partidária e na figura do parlamentar alijado dos grandes negócios com o governo – como o colégio de líderes e as comissões – que o Centrão deságua em força.
O ‘Centrão 2.0’ é um agrupamento que se aglutina em torno da demanda clientelista de seus membros e cuja agenda ideológica fica relegada em segundo plano. É apenas na oposição ao governo de esquerda, já no quarto mandato do Partido dos Trabalhadores (PT), que encontramos verniz conservador para a organização do Centrão como um bloco suprapartidário.”
Vimos nos últimos anos um Centrão ainda mais vitaminado. Após ser alvo de críticas constantes do ex-presidente Bolsonaro, o agrupamento ampliou muito os seus poderes justamente no seu governo, sobretudo depois da eleição de Arthur Lira como presidente da Câmara, em 2021: “O Centrão, congregado em torno da presidência da Câmara dos Deputados, passa a desfrutar de carta branca para fortalecer sua atuação clientelista e contar com a mesma presidência como garantidor das demandas individuais dos parlamentares em detrimento da Presidência da República. Em resumo, a lealdade dos parlamentares se desloca centripetamente em direção ao Parlamento. É essa a mudança institucional mais importante da qual o Centrão se aproveita para consolidar-se como grupo capaz de garantir a governabilidade, para o bem e para o mal, nos governos pós-impeachment de 2016.”
Jorraram sem parar novos incentivos legais para uma atuação cada vez mais individualista dos deputados e senadores. Uma das mais importantes foi a criação do Fundo Especial de Assistência Eleitoral, mais conhecido como fundo eleitoral, e a mega turbinada no Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos – o popular fundo partidário. Concluem os autores: “O deputado interessado em se reeleger depende mais de sua atuação individual para arrecadar recursos tanto do presidente da Câmara quanto do presidente do partido, além de que atuar nas fileiras do governo já não garante aumento da probabilidade de vitória eleitoral, uma vez que os recursos estão retidos nos presidentes de partido e no presidente da Câmara dos Deputados (…) É a somatória do clientelismo como prática eleitoral com o fisiologismo como prática legislativa que coloca o parlamentar do centrão como um ente autônomo ao partido, seja ao angariar votos, seja ao representar.”
Em tempo: Graziella Testa, mestre (UnB) e doutora (USP) em Ciência Política, é professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Lara Mesquista, doutora em Ciência Política pela Uerj, e pesquisadora da FGV. Bruno Bolgnesi, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), fez pós-doutorado na Universidade de Oxford, na Inglaterra, e é professor na Federal do Paraná (UFPR).
O spoiler amigo da professora Graziella Testa