André Houang* e Marina Pita**
Depois de ser devolvida, a MP 1068/2021 retornou ao Congresso Nacional como projeto de lei nº 3227/2021. Com isso, as atenções voltam-se para o Grupo de Trabalho na Câmara dos Deputados que discute a regulação das plataformas digitais de conteúdo – redes sociais, aplicações de mensageria e buscadores – em um importante processo de escuta e diálogo no âmbito legislativo. Apesar das propostas de regulação das plataformas contidas no projeto de lei terem encontrado o locus apropriado para a sua discussão legislativa, o debate acerca da regulação do direito autoral na Internet – uma questão levantada de forma torta pelo PL – não conta com o mesmo privilégio. Ainda que a moderação de conteúdo em redes sociais seja o tema da vez, compreensivelmente, o legislativo não deveria se furtar de um olhar atento para a necessidade de atualização da lei de direitos autorais.
Um dos fundamentos do projeto de lei é o entendimento de que os usuários de redes sociais são autores de seus posts, de forma que qualquer retirada de conteúdo seria uma potencial violação desses direitos autorais. Essa lógica, no entanto, apresenta algumas falhas. Primeiramente, para que esteja protegida por direitos autorais, uma obra deve atender aos critérios de originalidade, expressão e fixação. Muito do que é disponibilizado nas redes sociais não atende a esses requisitos e não é, portanto, protegido por direito autoral. Além disso, não é possível dar como estabelecido que um usuário de uma plataforma digital é detentor de obra por publicar conteúdo. Muitas vezes o criador da obra, que detém os direitos sobre ela, não é a mesma pessoa que a disponibiliza nas redes sociais. Além disso, os termos de uso das plataformas muitas vezes garantem a titularidade dos direitos pelos conteúdos nelas postados a essas empresas.
Mesmo que um post seja considerado obra para fins legais e que o titular seja o usuário, não há nada na Lei de Direitos Autorais (LDA) que garanta ao autor o direito de ser publicado. Ou seja, ao retirar “uma obra” de seu ambiente, a plataforma não viola o direito de quem a criou, do mesmo jeito que alguém que obtém uma licença para reproduzir uma fotografia em um livro não tem obrigação de utilizá-la. Então, a MP e o Projeto de Lei, além de todos os problemas envolvendo a liberdade de expressão e fruto de autoritarismo, da perspectiva do direito autoral também são absolutamente equivocados.
Podemos comemorar, portanto, mais uma vez, pela decisão do Congresso de devolver a MP e assim anular sua eficácia. No entanto, enquanto o tema de moderação de conteúdo e contas em redes sociais e serviços de mensageria será debatido no âmbito do grupo de trabalho que se debruça sobre o PL 2630/2020, não existe um debate estruturado para revisão da lei de direitos autorais. A despeito da existência de numerosos projetos de lei com o intuito de atualizar a LDA, especialmente na Câmara dos Deputados, a discussão da temática no Congresso Nacional ainda não conta com um fórum de discussão em andamento, com audiências públicas diversas, por exemplo, como ocorre em outros projetos.
Boa parte dos projetos de lei que discutem o tema estão pendentes de análise na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC). Dos 17 projetos de lei não apensados que tratam de mudanças na regulação de direitos autorais, 10 estão na CCJC; três estão na Comissão de Ciência, Tecnologia,Comunicação e Informática (CCTCI), e outros quatro estão na Comissão de Cultura, sendo todos protocolados este ano. A CCJC, presidida atualmente por uma das deputadas mais alinhadas ao Bolsonarismo, Bia Kicis, conta com projetos para análise dos anos de 2000, 2003, 2004, 2007, 2010, 2011, 2013 e 2019.
Responsabilidade
Um dos temas centrais a serem debatidos na reforma da Lei de Direitos Autorais é a responsabilização de intermediários. Ainda que o Marco Civil da Internet, Lei 12.485/2014, preveja (Art. 19, § 2º) que a regra de responsabilidade civil dos provedores de conteúdos quanto a violação de direitos autorais por terceiros seja tratada em legislação específica, passados sete anos essa norma ainda não existe.
O projeto de lei enviado pelo Executivo aborda de forma confusa essa questão central para o futuro da legislação autoral no Brasil. O PL propõe introduzir ao Marco Civil o art. 8º-C, §1º, III, segundo o qual o requerimento de titular de propriedade intelectual é uma das justas causas para a retirada de conteúdo de plataformas. Não está claro, no entanto, se essa retirada por alegada violação de direitos autorais é uma prerrogativa ou um dever das plataformas. Em outras palavras: mediante o recebimento de um requerimento de um titular de direitos autorais para que determinado conteúdo seja retirado da plataforma por supostamente violar esses direitos, a plataforma pode ou deve retirar esse conteúdo? A essa pergunta segue-se outra: pode uma plataforma ser responsabilizada pela retirada imprópria de conteúdo supostamente protegido por direito autoral após receber um requerimento de retirada? Ou seja, na hipótese de uma plataforma optar por retirar um conteúdo após receber a notificação de um titular de direitos autorais, caso a obra não fosse protegida ou caso o uso fosse legitimado pelas exceções e limitações ao direito autoral, a plataforma poderia ser responsabilizada civilmente pelos danos causados por ação própria?
Essas questões revelam a complexidade do tema e a necessidade de uma discussão aprofundada sobre responsabilização de intermediárias antes da adoção legislativa de qualquer modelo. Elas também revelam a importância do tema, tendo em vista a necessidade de se observar tanto a proteção à propriedade intelectual, com vistas ao incentivo à produção de obras, quanto o acesso e usufruto dessas obras pela sociedade.
Nesse debate, cabe destacar que a proteção aos titulares de direitos autorais foi traduzida em algoritmos (o código é lei, já diria Lawrence Lessig) e sistemas automatizados – em grande parte a partir do estabelecimento da regra de notificação e retirada do Digital Millennium Copyright Act estadunidense. De acordo com essa regra, se o intermediário na Internet não remover o conteúdo após a notificação, enfrentará responsabilidade civil pelo conteúdo de terceiro. Já os usos permitidos em lei não foram traduzidos em algoritmos, de forma que, atualmente, as operações automatizadas das plataformas tendem a privilegiar a retirada de conteúdo para evitar responsabilidade civil, ainda que o regime previsto nos Estados Unidos não seja, necessariamente, o mesmo em vigor em outros países do mundo. Ainda, os algoritmos, em certa medida, dão poder a alguns titulares de direitos, que podem abusar deste poder e impedir usos legítimos das obras.
O debate de devido processo, com o fortalecimento do direito ao contraditório e apelação pelo usuário, colocado no projeto de lei 2630/2020, pode ajudar a desatar o nó da falta de equilíbrio no tratamento das denúncias das obras potencialmente protegidas por direito de autor na Internet. Mas é preciso discutir que outras normas podem levar maior equilíbrio na garantia de direitos – tanto o de autor quanto o de liberdade de expressão.
Esta não é uma pergunta simples de ser respondida. A Justiça brasileira, em duas decisões recentes envolvendo paródias em vídeos publicados em plataformas digitais – retirados do ar por plataforma digital a pedido do titular das obras originais -, entende que cabem danos morais ao usuário que viu seu direito à liberdade de expressão cerceado. “Não há como deixar de notar, nessa senda, que os Termos de Serviço da plataforma colidem diretamente com a própria tutela da liberdade de expressão conferida pelo Marco Civil da Internet”, escreveu o desembargador, no acórdão.
A responsabilização de intermediários por violações de direito autoral merece e precisa ser discutida pelo legislativo brasileiro. Embora deva-se celebrar o fato de a MP ter sido rejeitada, o tema precisa ser discutido com atenção à altura de sua importância e complexidade. O GT formado para avaliar o PL 2.630, e que provavelmente também avaliará o PL 3227, tem suas atividades voltadas para outros assuntos pouco relacionados ao direito autoral e não é, portanto, o fórum adequado para essas discussões.
Já é passada a hora de termos um fórum específico, no Congresso Nacional, para debater direito autoral, para avaliar a proposta do art 8º C, §1º, III do projeto de lei e as demais propostas de responsabilização de intermediários, e para modernizar a legislação brasileira. Precisamos de um processo de discussão que permita a apresentação das diversas posições a serem negociadas e debatidas, para que possamos sair da inércia que nos prende ao passado quando o assunto é direitos autorais.
* André Houang é graduado em Direito, pesquisador do InternetLab e Coordenador para a Reforma dos Direitos Autorais do Creative Commons Brasil .
** Marina Pita é graduada em comunicação social, mestranda em comunicação e integrante do Intervozes. Ambos integram a equipe do Projeto Remix.
Deixe um comentário