Por Catarina Duarte, da Ponte Jornalismo, e Lucas Neiva, do Congresso em Foco
A falta de oposição da esquerda ao projeto de lei que prevê o fim das saídas temporárias para presos em datas comemorativas, aprovado nesta semana no Senado com 63 votos favoráveis e apenas 2 contrários, provocou decepção entre ativistas de movimentos sociais que lutam contra o encarceramento em massa.
“O conjunto da esquerda não entende o problema do encarceramento no Brasil”, lamenta Regina Santos, coordenadora regional do Movimento Negro Unificado (MNU) em São Paulo, em entrevista à Ponte. Desde sua fundação, no ano de 1978, em plena ditadura militar, o movimento já levantava a bandeira da abolição dos cárceres ao proclamar que “toda prisão é política”.
“Para nós do MNU, o encarceramento é uma forma de genocídio. O encarceramento brasileiro tem desdobramentos horrorosos. Você pune o apenado, mas você pune a família por conta das condições do cárcere”, afirma Regina. “Somos o terceiro país que mais encarcera no mundo e o que é pior em relação aos outros é que nós encaramos gente que nem é culpada ainda. No Brasil, mais de 40% dos presos não foram julgados. É escandaloso, vergonhoso.”
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Para o movimento, lutar contra o racismo significa lutar contra as prisões. “O encarceramento nesse país é um fator grave de manutenção de desigualdades. Neste país só são presos pretos, pobres e periféricos”, afirma. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 67,5% dos presos são negros.
Para a coordenadora regional do MNU, qualquer projeto que aumente o tempo de permanência das pessoas atrás das grades só piora o problema. “O que nós temos é um encarceramento que é só punitivo, não é um instrumento de reintegração à sociedade. A aprovação desse PL só piora esse quadro.
PublicidadeA saidinha é para que uma pessoa que está em progressão de pena, já no período final do cumprimento da sentença, aos poucos poder ir se reintegrando, se ressocializando. Quando você retira essa possibilidade, está agravando o olhar de só buscar punição para o apenamento no Brasil”, afirma.
Durante a votação no Senado do Projeto de Lei 2.253/2022, que tem relatoria do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), as bancadas de esquerda liberaram os parlamentares a votar como quisessem e muitos apoiaram o PL. Três senadores do PT votaram “sim”, inclusive Fabiano Contarato (ES), que é delegado da Polícia Civil e discursou apoiando o fim das saidinhas: “Não posso deixar de manifestar a minha fala no sentido de que, diante dessas circunstâncias, não é razoável explicar para quem teve seu filho morto por um homicídio doloso, em que o cara foi condenado a nove anos de reclusão, que não vai ficar nem três anos preso”. Os únicos votos contrários vieram de Cid Gomes (PSB-CE) e Rogério Carvalho (PT-SE).
As saídas temporárias são direito garantido pela Lei de Execução Penal (LEP). Concedidas apenas a presos que cumprem pena no regime semiaberto, elas são justificadas por três motivações: estudo, atividades de ressocialização e visita à família.
Com o PL aprovado pelo Senado, deixariam de ser permitidas as libertações temporárias para visita à família. O texto voltou à Câmara dos Deputados para uma nova análise por ter o teor alterado pelos senadores. Contudo, a perspectiva é de aprovação com facilidade entre os deputados.
O vice-líder do governo na Câmara e principal articulador da pauta da segurança pública, Pastor Henrique Vieira (Psol-RJ), prevê uma aprovação fácil do PL. Ele também avalia que um possível veto do presidente Lula ao projeto também seria facilmente derrubado pelo Congresso. A extinção das saidinhas é um tema prioritário na agenda da Frente Parlamentar da Segurança Pública, conhecida como bancada da bala, cuja composição atual beira a metade da Câmara dos Deputados.
Apesar da postura crítica, Regina afirma compreender a estratégia adotada pelo governo na votação. “O que entendo que foi a postura do governo foi de tentar não causar distensões e rupturas na sua base”, avalia. Na visão dela, contudo, o governo comprometido com os mais vulnerabilizados, porém, deveria ter um olhar especial para a questão do cárcere. “A minha visão de ativista é essa: o governo Lula deveria buscar uma nova postura em relação à questão do encarceramento e pensar em progredir para uma teoria do abolicionismo penal”, diz.
A visão de Regina Santos, do MNU, é corroborada por Mary Jello, uma das idealizadoras do coletivo Por Nós, que realiza o acolhimento de detentas, muitas vezes na porta dos presídios durante as “saidinhas”. Para ela, já era previsível que o PT não abraçaria a defesa dos direitos dos presos nessa votação.
“Uma pauta que nunca foi abraçada não pode ser abandonada. Inclusive, a lei antidrogas de 2006, que aumentou quase 700% o encarceramento de mulheres em uma década, foi criada num governo do PT. Foi nessa lei que, assim como eu, muitas mulheres caíram. Na época, o governador era o Alckmin, atual vice-presidente, ou seja, nunca foi uma pauta do PT, nem da maior parte da esquerda institucional e muito menos da sociedade”, aponta Mary, que é estudante de serviço social e ela própria uma sobrevivente do cárcere (termo que os ativistas consideram mais preciso do que “reeducando”, “ex-presidiário” ou “egressos do sistema penal”).
Para Mary, as saídas temporárias são essenciais para o resgate de laços entre os presos e seus familiares. “As famílias madrugam na porta, é um momento de resgate dos laços. Para as mulheres que são mães, é uma oportunidade de passar alguns dias ao lado dos filhos, ter momentos que parecem simples, colocar para dormir, por exemplo”, defende.
A determinação do PL de só permitir saídas para estudos também é criticada por Mary. Ela entende que a libertação temporária é fundamental para que o condenado tenha um acolhimento familiar, para além do estudo. O impacto da aprovação dessa lei afetará não só os presos, mas seus vínculos. “A pessoa que está presa adoece dentro do sistema e a família do lado de fora também”, conclui.
Em 2023, segundo dados da Secretaria de Administração Prisional de São Paulo (SAP-SP), em todos os quatro períodos de saída, o número de presos que não voltaram representou menos de 4% do total dos que voltaram.
O debate sobre o tema ganhou força no começo de janeiro com a morte do policial militar Roger Dias da Cunha, em Minas Gerais. Cunha foi baleado na cabeça durante um confronto. O autor do disparo, segundo a Polícia Militar mineira, era um foragido que não retornou da saída temporária de Natal.
Ancorados na indignação em torno desta morte, defensores do fim das saídas temporárias começaram uma mobilização que acelerou a votação do PL, que estava parado há um ano.
O PL deixou a Câmara dos Deputados em agosto de 2022 e seguiu para a tramitação no Senado. Acabou aprovado pela Comissão de Segurança Pública no último dia 6 e foi ao plenário sem passar por mais comissões, por correr em regime de urgência.
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