“Vai ter que ser dual, não tem jeito”.
Dual, que se explique logo para quem não está familiarizado com o debate sobre a reforma tributária, se refere ao compartilhamento entre os entes federativos da cobrança do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), que deverá substituir vários tributos sobre o consumo. A União se encarregaria da arrecadação do “IVA federal” (resultante da unificação de impostos como IPI, PIS e Cofins); e os estados, do IVA que pode nascer da unificação do ICMS e do ISS.
O autor da frase é Rodrigo Spada, auditor fiscal da Receita Estadual de São Paulo e presidente da Associação Nacional das Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite). A entidade integra – junto com a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados (Comsefaz) e outras organizações – a Coalizão Pela Reforma Tributária Ampla e Justa.
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Também estão nessa coalizão as instituições responsáveis pelas duas propostas de emenda à Constituição (PECs) que servem de base para as discussões em curso no Congresso: o Centro de Cidadania Fiscal, no qual nasceu a PEC 45, cujo principal autor é o economista Bernard Appy, atual secretário extraordinário do Ministério da Fazenda para a reforma tributária; e o Destrava Brasil, fundado pelo ex-deputado Luiz Carlos Hauly, autor da PEC 110. Detalhe: Appy sempre se bateu pela adoção do IVA único, conforme consta do texto da PEC 45.
Seja pelo trabalho dentro da coalizão, seja pelo acesso que tem àqueles que cuidam do assunto no Legislativo e no Executivo, Rodrigo Spada fica completamente à vontade ao falar dos prováveis rumos da reforma tributária. “Vai sair, viu? Acho que desta vez sai. Sinceramente, acho que quem apostar no fracasso da reforma tributária vai quebrar a cara”, adianta.
A Febrafite e o Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Estadual de São Paulo juntarão algumas das pessoas que conduzem a questão da reforma tributária em evento que deve dar o que falar, na próxima terça (25).
PublicidadeEm posição divergente com a de outros líderes de entidades do Fisco, Spada concorda com a opção do governo Lula de restringir o debate sobre o tema à simplificação da tributação sobre o consumo, deixando para depois a discussão sobre tributação de renda e patrimônio (que envolve questões como tributação de lucros e dividendos, instituição de alíquotas mais elevadas para quem ganha mais renda ou imposto sobre heranças). “Se botar para discutir renda e patrimônio agora, não aprova nada”, resume o presidente da Febrafite.
Graduado em Engenharia de Produção e em Direito (pela Federal de São Carlos e pela Unesp, respectivamente), Rodrigo Spada tem uma qualidade não encontrada em muitos outros especialistas em matéria tributária: ele fala de um jeito fácil de entender.
Com a conversa já em andamento, no restaurante de um hotel brasiliense, vejo que o que seria um papo informal rende mais que o esperado e obtenho a autorização dele para ligar o gravador. Que registra o que segue (minhas intervenções, aqui resumidas, estão em negrito):
O que dá para dizer que já está praticamente definido em relação à reforma tributária?
Acho que muita coisa, viu? Para começar, os princípios que a gente defende. O primeiro deles é base ampla. Não dá mais pra separar mercadoria de serviço. E há até uma questão de regressividade aqui. As famílias de alta renda consomem mais serviços e as famílias de baixa renda consomem mais bens e mercadorias. Gastam o salário com conta de água, conta de luz, celular, alimentação, farmácia… tudo isso é tributado pelo ICMS, que paga 25%. Enquanto aquilo que o rico consome mais, publicidade, arquitetura, streaming, cabelereiro, serviço paga 2 a 3%. Então estamos tornando o nosso sistema mais oneroso para os mais pobres. E gera cumulatividade também. São resíduos de custos tributários que vão se acumulando ao longo da cadeira produtiva, o que derruba a competitividade do produto nacional frente ao importado. Quanto mais longa a cadeia produtiva, maior a cumulatividade. Por isso que a indústria sofre mais do que o agronegócio. Grandes produtores, por exemplo, plantam, colhem e exportam. É uma cadeia curta, não tem resíduo. Agora, uma indústria cujo processo de produção envolve várias cadeias e que também contrata serviço: serviço de limpeza, serviço de segurança, serviço de arquitetura, serviço de publicidade, serviço de advocacia, serviço de contabilidade… tudo isso vai gerando resíduos que ele não consegue compensar na exportação e perde competitividade.
O outro princípio que a gente defende é que o imposto seja cobrado no destino. O ICMS foi criado com a tributação na origem, hoje é parte na origem e parte no destino, e o que acontece? Temos desigualdades regionais. Um cara de Brasília que compra um produto produzido em São Paulo está pagando o imposto, que fica embutido no preço da mercadoria, só que o dinheiro fica para o cidadão paulista. O cara do Maranhão, do Piauí está financiando o paulista. Isso é uma distorção grande! A outra questão é que, sendo na origem, abre caminho para a guerra fiscal, que é um dos grandes problemas hoje, e facilita a sonegação. A guerra fiscal por quê? Como o imposto fica no estado onde o produto é produzido, o secretário da Fazenda ou o governador faz essa pressão para que a empresa venha se instalar no seu estado oferecendo tributação menor. Hoje, todo mundo está perdendo. Fica um canibalismo fraticida porque os entes comprometem a arrecadação, reduzindo receitas, para atrair investimentos. Então todos perdem.
A gente também defende a não cumulatividade plena. O ICMS deveria ser não cumulativo, mas essa não cumulatividade é parcial. Há custos que podem ser transformados em créditos para compensação, outros que não podem, isso gera litígio e também gera custos. O que vai mudar? Tudo o que a empresa compra vai ter crédito para ela. Isso gera simplicidade. A gente pode desonerar completamente investimentos e exportação.
Mas as empresas de serviços dizem que vão pagar mais imposto…
É, fazem essa crítica. Foi o que o secretário de Finanças de SP falou e a gente rebateu. Ele falou que o serviço representa 70% do PIB e é o setor que mais emprega. Espera aí, vamos lá. Esses 70% englobam a administração pública de todos os estados, de todos os municípios e da União. Só isso é 20% do PIB e não vai ser afetado porque eles não pagam impostos. Então você já tira 20% da sua conta. Depois, quem presta serviço no meio da cadeia produtiva, e é significativo, também não vai ser afetado. Se uma empresa de serviço presta serviço para a indústria, ela vai ser beneficiada. Como é que funciona hoje? Se uma empresa de consultoria, ou de comunicação presta serviço para a indústria, ou para um comerciante, ou para um distribuidor, um atacadista, qualquer um. Se o custo do serviço dela é cem reais, ela tem que cobrar 105 porque cinco é o ISS. E aquele ISS é recolhido e não gera crédito. Aquele cinco foi para o Estado e perdeu. No modelo do IVA, ele não vai pagar 105. A indústria vai pagar 125 porque é 100 da mercadoria e 25 de imposto se ela não tiver crédito.
A alíquota não está explícita, né? Isso aí seria para regulamentação posterior, né? Ou já entra na PEC?
Não, [virá] por lei complementar. E é uma conta de chegada, depois posso explicar sobre isso também. Ninguém sabe qual vai ser. Vai ser uma simulação real do que vai acontecer, no primeiro ano, com uma alíquota de 1%, para avaliar a dinâmica econômica e o potencial de arrecadação desse imposto. Mas, vamos lá. Esses 25 reais de imposto que a empresa vai pagar, ela se credita. Para ela, é boa. Ela prefere pagar 125 e creditar 25 do que pagar 105 e perder os 5. Para a empresa de serviço que presta serviços para outras empresas, é bom. Só é ruim para a empresa de serviço que presta serviços para o consumidor final, que não vai ter o crédito. Mas 90% dessas empresas estão no Simples Nacional ou no MEI, que não vão ser afetados. A reforma não mexe nem no Simples Nacional nem no MEI. Quando você tira tudo isso, é 2% do setor de serviço que seria prejudicado. São empresas que prestam serviços para o consumidor final e não são do MEI nem do Simples Nacional. São grandes escritórios de arquitetura, grandes escritórios de advocacia, grandes clínicas médicas, apesar de que a área da saúde vai ter tratamento diferenciado… então é esse pessoal que vai ter o prejuízo…
E empresas de tecnologia?
Empresas de tecnologia que prestam serviços para o consumidor final, sim. Google, Facebook, Instagram, esse pessoal… mas mesmo esse pessoal que vai ser prejudicado, o que os economistas calcularam? Depois de dez anos o PIB tende a ser de 12% a 20% maior do que antes da reforma. Isso vai impactar na renda dos brasileiros por volta de R$ 500 por mês, em média. E aí ninguém perde. Esses daí também vão ganhar porque a economia vai crescer e as pessoas, com uma renda maior, tendem a consumir mais serviços. Então o que os economistas calculam é que ninguém perde – nem as empresas de serviços.
Precisa ver se a empresa consegue esperar dez anos ou se não morre antes.
Verdade, mas tem a transição. Se a gente aprovar este ano a PEC, o modelo só vai estar implementado em definitivo em 2031. Este ano aprova a PEC, vamos supor que só aprove a a lei complementar no meio do ano que vem. Pelos princípios do Direito Tributário da anualidade e da noventena, só vai começar a poder valer em 2025. Só que, pelo que está no texto, primeiro só vale para CBS, que é o da União, com uma alíquota pequenininha.
No primeiro ano, né?
Um ou dois anos, depende da 110 ou da 45, qual que é o texto. Aí em 2025 vai valer, por um ou dois anos, só para CBS, com 1%, para ver qual é a capacidade de arrecadação desse novo tributo.
Na 45 é dois anos?
Dois anos.
E na 110 é um ano?
Um ano. Depois disso que vai começar a criar o IBS e reduzir o ICMS e o ISS. Vai ser gradual. Vai, sei lá, aumentar 20% ao ano para que em cinco anos tenha a transição completa.
Aí tem outro aspecto, né, sendo um pouco advogado do diabo. A gente entende que a reforma tributária é importante, inclusive para a retomada do crescimento…
E seria uma demonstração de força política também, né? Ninguém conseguiu aprovar a reforma tributária, o governo vai aprovar a reforma mais difícil…
É, exato. Mas, veja, estamos em 2023. Temos até 2031 oito anos. Seriam oito anos convivendo com dois sistemas tributários diferentes. Nesse período, pelo menos, a tributação vai ficar mais complexa e o objetivo da simplificação vai para o espaço, concorda?
Concordo, faz sentido o raciocínio, mas a resposta dos técnicos, e eu confirmo que a gente vai conseguir fazer, é que não vai gerar novas obrigações tributárias para os contribuintes. O contribuinte vai ter que emitir a nota fiscal, e isso ele já faz hoje. Emitindo a nota fiscal, o Fisco vai ter condição de calcular o imposto e mandar a guia pra ele, como é feito com o IPTU, como é feito no IPVA. Muitos países já fazem isso, é a fatura “pre hecha”, a fatura “pré-feita”, né? Se você tem um imposto simples com uma alíquota única ou poucas alíquotas e tudo o que você compra dá crédito e tudo o que você vende dá débito, o Fisco, com a nota fiscal eletrônica, consegue fazer a sua contabilidade. Claro que, e sem isso a gente é contra a reforma tributária, só vai dar crédito para imposto efetivamente pago. Não vai ter mais esse negócio de empresa noteira, que emite nota, gera crédito no mercado, as pessoas se creditam, fraudam o Fisco e não recolhem. O imposto pago vai para a conta daquele contribuinte, como se fosse uma conta corrente. Chega no final do mês, o Fisco vai e olha: Congresso em Foco, você recolheu tanto, vendeu tanto, gastou tanto, está aqui o seu boleto. Você tem 30 dias para pagar ou fazer uma reclamação. Você pagou, o Fisco não pode rever. Não tem aquela insegurança jurídica de ficar cinco anos esperando para ver se vai prescrever.
Mas a empresa, de qualquer maneira, vai precisar escriturar as despesas passíveis de crédito, no mínimo para conferir. Tem trabalho para fazer.
Verdade, mas hoje as empresas já fazem o controle. Imagino que não será difícil adaptar os sistemas que já existem para fazer uma nova forma de apuração, mas vou me certificar disso.
Quem são os grandes inimigos da reforma tributária?
Os grandes municípios: Frente Nacional dos Prefeitos e Abrasf [Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais]. Eles defendem a PEC 46, que o Oriovisto protocolou. Mas essa aí é aquela máxima de que alguma coisa tem de mudar para tudo continuar como está. Eles querem simplificar, mas continua no mesmo modelo. Sem esses princípios do IVA de base ampla, de não cumulatividade plena, continua o ISS cumulativo, a tributação continua na origem. Traz a unificação do ICMS sem resolver problemas de bitributação. Quer dizer: eles são hipócritas, defendem o que interessa a eles. Por que não colocam o ISS no destino também? A pessoa faz a compra hoje pelo cartão de crédito no Piauí, em Brasília, em outras cidades e o imposto vai para São Paulo, onde a empresa de cartão de crédito está sediada e não para o município onde o bem foi comprado. A mesma coisa Facebook, Google…
Mas aí não vai ter uma queda de arrecadação brutal para São Paulo?
Para o município de São Paulo. O estado já aceitou. O estado topa que no IVA o imposto vá para o destino.
Mas vai perder dinheiro?
Perde, mas com a guerra fiscal está perdendo mais. Se continuar assim, o efeito deletério da guerra fiscal é pior.
O Appy continua fazendo a defesa do IVA único, né?
É, mas eu acho que eles vão para o dual.
Embora o Appy continue defendendo o IVA único…
Não sei se ele continua defendendo, é possível que sim. É o discurso dele. No discurso dele, ele fala das características de um bom IVA para corrigir as distorções que temos hoje. Então ele não ressalta tanto essa questão do IVA único, fala que tem que preservar a autonomia dos entes federativos. É uma sinalização. O governo não vai mandar proposta de reforma tributária…
Você está convencido disso?
Estou convencido disso, ele não vai mandar. Ele está falando que é uma reforma do Congresso Nacional, é uma reforma dos brasileiros. Porque, se o governo manda uma proposta, a proposta é do PT, a proposta é do Lula. Aí não vai ser aprovada mesmo. O instrumento legislativo é a PEC 45, porém o texto não vai ser o texto da PEC 45. Eles vão pôr qualquer outra coisa lá dentro, consensuada com o governo. E o governo está trabalhando nesse texto junto com o Aguinaldo [Ribeiro, o relator da reforma tributária na Câmara dos Deputados], em reuniões, grupos de trabalho. É uma discussão que tem que superar a questão ideológica e política, senão não passa mesmo. E, só para voltar ao que você perguntou, quem está contra? Abrasf. O agronegócio ainda não está convencido que é bom. O agro ainda não é favorável. E algumas empresas de serviços.
E tem a questão da Zona Franca, que parece ter uma oposição forte do Appy, né?
Sim, tem a Zona Franca e ele é contra. Todo mundo que tem uma visão mais técnica é contra porque o sistema é muito ineficiente e eles querem que perpetue uma distorção. Não é apenas que a Zona Franca não pague imposto. O problema é que não paga imposto, as empresas geram créditos e os outros estados têm que arcar com os créditos de impostos que não foram pagos. Quando o governo falou em reduzir o IPI de alguns impostos, o pessoal da Zona Franca foi contra. Porque as empresas que estão lá ganham com essa diferença do crédito que geram lá. É uma tributação negativa. Os outros estados subsidiam as empresas da Zona Franca. Quando vai diminuir o imposto, as empresas vão ter menos subsídio, menos diferencial competitivo e elas são contra. Não sei como resolver isso. Querem resolver com fundo de desenvolvimento regional, em que o estado do Amazonas receberá uma montanha de dinheiro para dar tantos milhões para Honda, tantos para a Philips, para manter os empregos lá.
Mas parece bem difícil aprovar o fim da Zona Franca no Congresso… aliás, a PEC 110 mantinha a Zona Franca, né?
Sim. Pela legislação em vigor, a Zona Franca vai até 2073.
E o Appy quer reduzir esse prazo?
Não sei qual a solução dele. Ou repassa dinheiro público para as empresas via subsídio, que é distribuição de dinheiro público mesmo, concorrendo com a saúde a educação, ou revê o sistema.
O que será mais difícil enfrentar no debate da reforma tributária: os eventuais interesses contrariados dos municípios e dos estados ou os conflitos entre diferentes setores privados da economia? A briga do serviço com a indústria, o agronegócio…
O agronegócio é muito forte. Estão abrindo tratamento diferenciado para o agro, você viu? Cinco setores vão ter tratamento diferenciado: saúde, educação, agro, transporte de carga e transportes coletivos. O governo concordou em garantir alíquota menor para esses setores. Também vai haver um tratamento diferente para os serviços financeiros, fazendo aquilo que é prática no mundo inteiro. Não entendo muito dessa parte, mas confio. Mas o agro é muito forte e não aparece. Eles têm aquele negócio de que o agro é pop, então o agro não pode contestar publicamente a reforma tributária. Mas, veladamente, eles financiam outras instituições que são contra. Essa discussão envolvendo o impacto para cada setor não vai ser fácil.
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