Luiz Alberto dos Santos *
A decisão do presidente do Senado e do Congresso Nacional, senador Renan Calheiros, proferida na sessão dessa terça-feira (3), restituindo à presidente da República a Medida Provisória nº 669, editada em 27 de fevereiro de 2015, causou não apenas certa perplexidade, em função do contexto político e jurídico em que foi editada, mas também certo espanto, na medida em que tal decisão tem caráter inédito e excepcional, produzindo, ademais, instabilidade institucional.
Na verdade, o presidente do Senado não poderia ter adotado tal medida no exercício de seu cargo, e menos ainda tê-la pronunciado em sessão do Senado, em vista da natureza do instrumento “medida provisória”, sua base constitucional, do seu conteúdo específico e das circunstâncias que justificaram a sua edição.
Primeiramente, vale analisar o tema sob o prisma do ineditismo. Com efeito, desde 1988, quando surgiu a medida provisória na ordem jurídica nacional, em apenas duas outras oportunidades se teve situação similar.
A primeira ocorreu em 1989, quando da edição da Medida Provisória nº 33, de 16 de janeiro de 1989, pelo presidente José Sarney, que exonerava, a partir de 1º de março de 1989, os servidores da Administração Federal direta, autárquica ou fundacional e dos extintos Territórios Federais, admitidos sem concurso público, que não tinham adquirido estabilidade, nos termos do art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
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Naquela ocasião, o presidente do Senado em exercício, senador José Ignacio Ferreira, por meio da Mensagem CN/N° 01, de 20 de janeiro de 1989, devolveu a referida medida, por considerá-la “flagrantemente inconstitucional”, visto que a demissão de servidores não estáveis, por se tratar de mero ato administrativo, não requeria a manifestação do Poder Legislativo, estando inserida, exclusivamente, no âmbito das competências do Poder Executivo.
A própria medida provisória, ademais, repetia o conteúdo de um Decreto (94.457) editado em 15 de janeiro de 1989, e revogado no dia seguinte (Decreto 97.463), o que revelava, sobretudo, a disposição de o presidente da República receber o “aval” do Legislativo para medida – meramente administrativa – cujo caráter tinha, como teve, repercussão negativa.
Além disso, entendeu o presidente do Senado que a extinção dos cargos cujos ocupantes seriam demitidos somente poderia ser feita “pelo Congresso Nacional, através de projeto de lei especifico, de iniciativa do Poder Executivo”, nos termos do que dispunha o art. 48, X da CF.
Assim, submeter ao crivo do Legislativo algo que o Executivo poderia fazer sem a sua permissão prévia, afirmava a mensagem, importaria em “violação ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes”.
Em 24 de janeiro de 1989, o presidente do Senado acolheu recurso do então líder do Governo, senador Saldanha Derzi, e encaminhou a matéria à Comissão de Constituição e Justiça do Senado, mas esse recurso não chegou a ser apreciado em vista do decurso de prazo da Medida Provisória, que perdeu a sua validade após 30 dias da sua edição, como determinada a Constituição à época.
O segundo episódio acontecem em 19 de novembro de 2008, quando o então presidente do Senado procedeu à devolução da Medida Provisória nº 446, de 7 de novembro de 2008 ao Poder Executivo, com amparo nas competências previstas no art. 48, incisos II e XI, do Regimento Interno do Senado Federal, sob o argumento de que não estariam presentes, no caso – alterações na legislação sobre a emissão de certificados de entidades beneficentes de assistência social – não estariam presentes os requisitos de urgência e relevância para a edição da Medida.
Nesse caso, porém, de imediato o líder do Governo no Congresso, senador Romero Jucá, apresentou Questão de Ordem, por considerar que, constitucionalmente, “a decisão de definir ou não constitucionalidade cabe ao Plenário das duas Casas, posteriormente, por meio de parecer de relator e das Comissões de Constituição e Justiça”. Recorreu, portanto, da decisão do presidente do Senado, para que o plenário se pronunciasse sobre a devolução, ouvida a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
Assim, não surtiu efeito concreto e imediato a decisão do presidente do Senado, que continuou vigendo e em tramitação na Câmara dos Deputados. Mas, em sequência, o processado foi enviado à Câmara dos Deputados que, em sessão do dia 10 de fevereiro de 2009, decidiu rejeitar a Medida Provisória, em função de acordo firmado em reunião do Colégio de Líderes, em 3 de fevereiro de 2009, que visava “pacificar polêmicas acerca da proposição e, da mesma forma, permitir a discussão de um projeto adequado que reestruture o sistema de certificação de entidades beneficentes de assistência social”, o qual seria apreciado em regime de urgência “urgentíssima”.
Vale destacar que, naquela oportunidade, Nota Técnica elaborada por um dos mais respeitados regimentalistas e constitucionalistas do Senado Federal, o consultor Gilberto Guerzoni Filho, conclui no sentido de que, à luz dos §§ 5º e 9º do art. 62 da Constituição, segundo o qual “a deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionaise que caberá à comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional”, e que somente o Plenário de cada Casa, após a manifestação da comissão mista, poderia deliberar sobre a validade constitucional ou não de medida provisória.
Somente o Poder Legislativo – que não se confunde com a pessoa do seu Presidente – poderia, soberanamente, e segundo o regimento de cada casa, se manifestar validamente sobre um ato complexo, emanado do Chefe do Poder Executivo lastreado no art. 62 da Constituição – e que, sequer, detém a prerrogativa de retirar medida provisória já editada, mas, tão somente, revoga-la por outra subsequente. Além disso, destacava o fato de que a devolução da Medida Provisória nº 33, de 1989 não constitui, de fato, um precedente, uma vez que o equacionamento do problema se deu pela mera inação das partes envolvidas, “tendo em vista que, aparentemente, o ato do Presidente em exercício do Senado Federal à época se revelou politicamente conveniente para todos”.
Em 2005, o mesmo entendimento já havia sido proferido em parecer da Secretaria-Geral da Mesa da Câmara dos Deputados, quando o então presidente da Casa, Severino Cavalcanti, indagou sobre a possibilidade da devolução de medida provisória. O órgão técnico entendeu que, produzindo efeitos imediatos por ter força de lei, “a MP não se trata, pois, de uma simples iniciativa legislativa configurada em uma proposição passível de ser admitida ou não à tramitação, mas de um ato de natureza complexa, de efeitos imediatos decorrentes da sua publicação”, e que somente mediante o pronunciamento da comissão mista e do Plenário de cada uma das Casas do Congresso, aos quais cabe o exame da constitucionalidade das MPs, poderia ser afastada a vigência da medida provisória.
Naquela ocasião (em 6 de abril de 2005) o próprio presidente do Senado – senador Renan Calheiros – apreciando questão de Ordem do senador Aloizio Mercadante, expressou o entendimento, baseado na constituição e no regimento, de que “nem o presidente do Senado Federal, nem o presidente da Câmara dos Deputados, nem o presidente do Congresso Nacional têm competência para devolver medida provisória. Essa competência é somente do Plenário das duas Casas do Congresso Nacional, com fundamento em parecer preliminar da Comissão Mista, previsto na própria Constituição, pelo não-atendimento dos pressupostos de relevância e urgência, parecer este que, sendo aprovado, a medida provisória estará automaticamente arquivada”.
No caso em questão, o presidente do Senado – o mesmo que, em 2005, adotou o entendimento em sentido contrário – delibera, isoladamente, sobre a constitucionalidade de uma medida provisória que, sob todos os aspectos, está sustentada constitucionalmente, afirmando que a medida provisória não poderia majorar tributos ou tratar de plano econômico, e que não estaria presente o requisito de urgência, visto que somente produzirá efeitos a contar de 90 dias de sua publicação.
No que toca aos juízos de urgência e relevância, eles têm caráter nitidamente político, mas sobre sua existência somente podem se manifestar a Comissão Mista ou o plenário de cada Casa ao apreciar a existência dos pressupostos constitucionais. Se for o entendimento dessas instâncias, não caberá, sequer, ao Supremo Tribunal Federal manifestar-se em sentido contrário, embora possa o STF, em tese, apreciar a existência desses requisitos, e notadamente o da urgência, como já expressou aquela Corte em mais de um julgado (e.g. ADI-MC nº 525, ADI-MC nº 1516 e RE nº 217.162).
Ainda que no caso em questão a decisão do presidente do Senado tenha se dado de forma tempestiva – ou seja, imediatamente após a edição da Medida Provisória – o fato de que o ato presidencial não incorre em qualquer dos impedimentos constitucionais elencados no art. 62, pois não trata de matéria relativa a nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral, ou a direito penal, processual penal e processual civil, nem a organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros, ou a matéria orçamentária ou reservada a lei complementar, e nem visa a detenção ou sequestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro, e nem fere qualquer impedimento material, notadamente em matéria tributária, torna tal decisão ilegítima e, ela sim, usurpadora de competências não somente dos demais Parlamentares, mas também da presidente da República.
A própria exigência constitucional para a majoração de contribuições sociais de anterioridade de noventa dias, único limite ao poder de tributar que poderia ser apontado no caso, estaria sendo atendida pela Medida Provisória, não sendo a vacacio legis impedimento, no caso, à edição de medida que, justamente em função da necessidade de rever-se benefícios fiscais eventualmente concedidos em desatenção aos princípios da Lei de Responsabilidade Fiscal, altera alíquotas com vistas a sua majoração.
Inexiste, na Constituição, qualquer impedimento a que medida provisória disponha sobre tributos, sejam eles impostos ou contribuições, desde que respeitados os princípios da anterioridade e as limitações do poder de tributar estabelecidas nos art. 150 e 151 da Constituição. E, quando da discussão, pelo Senado, da Proposta de Emenda à Constituição nº 11, de 2011, sequer foi aprovada a proposta de que, para produzir efeitos no exercício subsequente, a medida provisória que institua ou aumente tributo fosse aprovada até o último dia do exercício em que fosse editada. Tampouco há, na Constituição, qualquer impedimento específico quanto à veiculação de “planos econômicos” por medida provisória, exceto no que se refere ao “sequestro de bens, poupança popular ou ativos financeiros”, fruto da traumática experiência do Plano Collor, de 1990, veiculado por meio de medida provisória.
O fato de o Poder Executivo haver assimilado a decisão do presidente do Senado, sem que tenha sido concluído o tramite regimental e constitucional capaz de produzir o efeito suspensivo da vigência, abre perigoso precedente que fragiliza a competência presidencial e causa um forte embaraço jurídico e que não poderia estar submetido a um juízo de conveniência política, no sentido de evitar o conflito.
A decisão de qualquer dos Poderes, Executivo ou Legislativo, sobre essa questão, deveria conformar-se, como nos casos anteriores, ao que determinam a Constituição e os regimentos, única forma de assegurar a segurança jurídica que a própria natureza das medidas provisórias, por natureza precárias, requer, e evitar a instabilidade institucional decorrente.
* Consultor Legislativo do Senado Federal. Advogado. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Mestre em Administração e Doutor em Ciências Sociais. Professor da EBAPE/FGV. Ex-Subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil – PR (2003-2014).
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De fato, precedente perigoso.