O Senado é composto de 81 senadores. Na hora da apuração dos votos para a presidência da Casa (2/1/19), eis a surpresa: 82 votos! Um voto foi fantasma. É o mesmo banditismo do tempo do senador Pinheiro Machado (“o condestável da República”), que manipulava eleições, no princípio do século 20.
Fraude inequívoca, que, pelas leis vigentes, justificaria a imediata apuração. Mas o que fez o presidente dos trabalhos? Sem nenhuma cerimônia, rasgou os dois votos “duvidosos” (não envelopados), diante das câmeras, posto que comprovavam a materialidade do ato delinquente, e os colocou no bolso. Completou, sem nenhuma preocupação com a legalidade: “Vou levar para o túmulo”.
Alguns escrutinadores diziam que eram “dois votos em Renan Calheiros”. Quem conhece o cacique Renan sabe que isso é bem provável (“se non è vero, è bene trovato”). Dois dias antes da eleição Renan falou em dar umas “porradas” em Tasso Jereissati (que pediu votação aberta).
A Casa deliberou, por 50 a 2, que os votos seriam abertos (públicos). Mas isso ocorreu sob a presidência de um dos candidatos, que foi jogador e árbitro do jogo ao mesmo tempo. Arnaldo diria que isso não pode! O presidente do STF, ministro Toffoli, anulou essa sessão e o voto voltou a ser fechado.
A senadora Kátia Abreu, sem nenhuma polidez, sob o império dos impulsos emocionais, subiu à mesa e “roubou” a pasta dos trabalhos (como a criança que pega a sua bola e acaba com o jogo). No dia seguinte trouxe um buquê de flores para o humilhado senador, Davi Acolumbre.
O presidente da sessão, José Maranhão, quando o circo estava pegando fogo, com microfones abertos, disparou, como se estivesse em sua casa: “Vou dar uma mijadinha e já volto”. É a total confusão entre a coisa pública e a privada!
Para completar o indecoroso e deprimente espetáculo, um dos escrutinadores (fiscais) da eleição era nada mais nada menos que um senador presidiário, condenado definitivamente por fraude, que está cumprindo pena na “Papuda”, mas com o direito de continuar sendo senador! Durma com um barulho desse!
Onde encontramos uma explicação para tudo isso?
É a teoria da “cordialidade” (do “homem cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil), uma belíssima alegoria (ou metáfora), que nos permite compreender a formação das elites políticas e empresariais extrativistas do nosso país.
Trata-se de uma ferramenta intelectual, uma ficção capaz de explicar que o presente da nossa República (dominada por agentes do Estado e do Mercado) ainda não se soltou das amarras que o prendem ao passado colonial e escravagista (ver P. Meira Monteiro, Signo e Desterro).
“A sociedade foi mal formada nesta terra, desde as suas raízes” (H. Smith). Essa má formação se deve a vários fatores, dentre eles há um problema de caráter, de personalidade. O departamento de rapina das elites do poder comprova o quanto o “cordialismo” (cordialidade no seu sentido pejorativo) está presente no atraso das nossas instituições.
Na categoria mal compreendida do “homem cordial” precisamos distinguir dois planos: ela conta com a máscara da hospitalidade, da generosidade, da polidez (veja as flores de Kátia Abreu), que esconde o total desapego às regras gerais e impessoais da civilidade (como tirar da mesa do Senado a pasta dos trabalhos).
As elites extrativistas do poder possuem absoluta aversão “ao ritualismo social” assim como às formalidades. O que vale é seu voluntarismo. Com frequência seus caprichos chegam à delinquência. No caso dos “82 votos”, o excedente, o extra, é pura bandidagem da velha política degenerada.
Sérgio Buarque de Holanda não escreveu um livro de criminologia. Ele não era criminólogo. Ele escreveu sobre psicologia, sociologia e história. Da riqueza inesgotável das suas alegorias podemos, entretanto, inferir traços criminológicos marcantes nos setores bandidos das nossas elites do poder (políticas e empresariais), que estão saqueando todo o restante da população brasileira composta de proprietários, classes médias, trabalhador precarizado e excluídos.
O problema é o seguinte: com o “cordialismo”, que é a cordialidade elevada à última potência, “não se criam os bons princípios” (Sérgio Buarque, Raízes do Brasil). Não se cria a civilidade, a boa e ética convivência em sociedade.
O cordialismo (que é sinônimo de cordialidade mais banditismo ou pessoalismo) é um legado do período colonial, regido pela “velha ordem” (patriarcal, familiarista, nepotista, personalista e aristocrática). A pessoa “cordialista” fala e age com o coração, sob impulso voluntarista, sob o império do amiguismo, do filhotismo, do nepotismo, não da razão.
As elites “cordialistas” do poder odeiam regramentos abstratos objetivos e impessoais (que são o sonho de consumo das configurações das democracias liberais racionais) e atuam sob manifesta incompatibilidade com os princípios republicanos que regem o modelo de Estado contemplado na CF de 88 (moralidade, impessoalidade, legalidade, publicidade e eficiência).
Sua sociabilidade é inteiramente familiar, ou seja, seus atos, mesmo quando no exercício da função pública, continuam expressando o que vem dos seus vínculos mais estreitos, das suas relações mais próximas, mais íntimas (“vou te dar uma porrada”, “vou dar uma mijadinha e já volto”, “os votos rasgados vão para o túmulo”, “vou presidir a sessão que me beneficia”).
Em síntese, o “cordialismo” emergente do conceito de “homem cordial”, consoante a bela alegoria de Sérgio Buarque, para muito além da polidez que é sua máscara, revela-se inteiramente incapaz de compreender as formas ritualizadas, formalizadas, das instituições e do relacionamento social.
Todo o cenário político-empresarial que exprime o núcleo duro das elites do poder latino-americanas continua funcionando dessa aberrante maneira. Nos países mais civilizados isso também ocorre, neles também existem barões-ladrões, mas em grau bem menor, com controles mais rígidos.
Aqui o espetáculo da bandalheira e da vulgaridade é um esculacho total! O bom é que o povo agora vê e comenta as barbaridades das elites do poder nas redes sociais. E já sabe quem serão os próximos que serão degolados nas eleições. Vamos faxinando!
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