Os dois governos de Lula, e o de Dilma, até o momento, não tocaram em uma das mais neoliberais agendas do governo Fernando Henrique: a transferência de responsabilidades, e dinheiro, do Estado para o setor privado não governamental.
Bresser Pereira, o ministro de Reforma do Estado durante o primeiro mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso, implementou o discurso de uma parcela de acadêmicos e oportunistas, ou os dois, que discutiam a agenda de privatizações na onda neoliberal dos anos 80 e 90.
Em seu livro “Reforma do Estado para a Cidadania”, de 1998, o ministro defendia a cisão do serviço público em “atividades típicas do Estado”, e o resto. Foram colocados na cesta de atividades que não são estratégicas para o Estado, por exemplo, os militares e a educação. Sua proposta de uma “publicização” implicava transferir, para entidades sem fins lucrativos, a responsabilidade pela implementação de atividades cuja concepção permaneceria sob controle do Estado. Ele citava como exemplos de atividades “onguizáveis” as escolas, os hospitais, centros de pesquisas e museus.
Essa “onguização” ganhou o nome de uma coisa chamada “terceiro setor”, onde foi enfiada uma ampla parcela da diversidade política e cultural da sociedade, que outros, com mais propriedade, chamam de sociedade civil. Na defesa de sua argumentação, Bresser-Pereira dizia:
“Na reforma gerencial em curso no Estado brasileiro, a instituição que provavelmente terá a maior repercussão é a das organizações sociais. A proposta da reforma é a transformação dos serviços sociais e científicos, que o Estado hoje presta diretamente, em entidades públicas não-estatais, entidades sem fins lucrativos, do terceiro setor. Ao serem qualificadas como organizações sociais, as novas entidades públicas, mas de direito privado, poderão celebrar um contrato de gestão com o respectivo ministério supervisor e terão de participar do orçamento do Estado.”
Bresser Pereira estava correto quando afirmava que “a instituição que provavelmente terá a maior repercussão é a das organizações sociais”. Basta ver o atual noticiário político e policial. O “público não estatal” virou “bolso não estatal”. E não adianta dizer que o problema é de má gestão por parte das organizações da sociedade. Na verdade, os desvios que hoje ocorrem são inevitáveis, porque as entidades sem fins lucrativos não existem para fazer o que o Estado “não quer” fazer, não prestam para isso e não deveriam se prestar a isso.
O ministro deu início a uma instrumentalização da ação política e social que a sociedade possuía desde que as organizações não governamentais confundiam-se com caridade e filantropia. Na verdade, as religiões inauguraram as chamadas ONGs por meio de suas ações. O neoliberalismo fanático transformou-as em agências prestadoras de serviço para “clientes”, ou seja, nós.
Quando a reforma do Estado foi proposta e imposta, Bresser Pereira fez uma viagem para apresentar sua versão da gestão pública em escolas da Europa. Eu estava na apresentação que ele fez na London School of Economics (LSE), em uma noite fria e úmida de 1998, da qual saíram sem cumprimentá-lo a maior parte dos alunos e professores ali presentes.
Naquele momento, a discussão acadêmica, na LSE e em outras universidades, já estava muito adiante da visão de que ONGs substituem o papel do Estado. A experiência britânica já havia sido avaliada, tendo-se comprovado o fato de que as ONGs não substituem o poder público, sequer em eficiência na entrega de serviços. O que não quer dizer que não tenham um papel relevante e necessário. Mas “publicização” e “parceria” não são desejáveis.
Isso não quer dizer que algumas entidades não devam ser financiadas pelo dinheiro público. Mas deve-se considerar que os papéis que as ONGs melhor desempenham são o de fiscalização do próprio Estado, de representação social nos processos decisórios, e de atuação em condições nas quais o Estado não consegue estar presente na velocidade e na intensidade necessárias – como no atendimento a grupos sociais vivendo em áreas isoladas, ou grupos que requerem atendimento especial.
O Estado deve, sim, financiar organizações não governamentais, porém com critérios claros e com transparência. O modelo neoliberal de Bresser Pereira cumpriu seu inevitável destino de transformar as ONGs, ou, mais precisamente, as organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips), em focos de corrupção e mau uso do dinheiro público. Há também o, digamos, “comentário de corredor” de que essas entidades poderiam estar sendo utilizadas para financiamento de campanhas políticas…
O fato de que o PT e que outros partidos “de esquerda” convivem confortavelmente com essa agenda neoliberal chama a atenção. O atual momento seria propício para uma reversão do quadro. O Estado deve ter uma estratégia clara de promoção dos direitos coletivos e de uma cidadania plena, consciente, que não se limita à ideia de que cidadania significa ser bem atendido por um serviço público – a visão clientelista da tal “publicização”.
Portanto, o governo deve criar critérios de financiamento, deve reverter esse modelo. Não é mais possível, aceitável, continuar repassando verbas indiscriminadamente para depois suspender, ao mesmo tempo, e também sem critérios, todos os convênios existentes. Agindo assim, o governo é duplamente irresponsável: deixa à míngua organizações da sociedade que prestam serviços relevantes, e, ao mesmo tempo, deixa à míngua também aqueles cidadãos que necessitam de atendimento especial e que gostariam de ver o Estado melhor fiscalizado, ah se gostariam!
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