Antes que tudo, quero expressar a minha alegria por estar de volta ao convívio inteligente, desafiador e participante do Congresso em Foco. Espero que o público leitor e toda a equipe do melhor portal de informações e análises políticas do Brasil tenham um 2013 feito só de paz, saúde, felicidades, novas e maiores conquistas pessoais, profissionais e intelectuais!
Entre as obras de não-ficção que li durante o recesso de fim de ano, a melhor se intitula The clash of ideas in world politics: transnational networks, states, and regime change, 1510-2010, do cientista político John M. Owen IV, professor da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos. Antes disso, Owen já havia publicado Liberal war, liberal peace: American politics and international security (Cornell University Press, 1997), bem como vários artigos e ensaios em International Security e outros periódicos de forte prestígio acadêmico.
O autor se filia a uma tendência no estudo das Relações Internacionais que vem conquistando muitos adeptos desde os anos 80 e consagra a noção de que as ideias fazem (muita) diferença na política mundial, o que põe em xeque paradigmas acadêmicos solidamente estabelecidos, em especial o realista, representado por autores como Hans J. Morgenthau (A política entre as nações, UnB/Ministério das Relações Exteriores) e Kenneth Waltz (Man, the state, and war, 1959; e Theory of international politics, 1979). Para esses realistas, as relações entre os Estados soberanos norteiam-se unicamente pelo pragmatismo dos interesses de poder político-militar, sem que ideologias e concepções deste ou daquele regime político possam ou devam exercer influência significativa alguma na conduta externa das nações. A crítica de Owen ao realismo está presente, por exemplo, no seguinte questionamento: se a intervenção militar no Iraque obedeceu somente aos interesses de segurança energética (trocando em miúdos: petróleo) dos Estados Unidos e de seus aliados na Europa e no Japão, então por que diabos o governo George W. Bush não se contentou em derrubar Saddam Hussein e substituí-lo por um déspota confiável e preferiu pagar um pesado preço em ‘sangue e tesouro’ (e também em apoio eleitoral) para semear a plantinha frágil da democracia no solo ingrato do Oriente Médio?
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I
O título escolhido por Owen faz alusão ao influente e polêmico O choque das civilizações e a recomposição da ordem mundial (Objetiva, 1997), do falecido politólogo de Harvard Samuel P. Huntington, que disputou com Francis Fukuyama, hoje na Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins e autor de O fim da história e o último homem (Rocco, 1992), o reconhecimento do público e dos policy makers como o mais plausível intérprete do novo ordenamento internacional que emergia do pós-Guerra Fria. Ao quase triunfalismo com que Fukuyama saúda o advento de uma paz duradoura graças à vitória da economia de mercado e da democracia liberal por toda parte, Huntington opõe a visão pessimista de diferenças culturais mutuamente irredutíveis gerando desentendimentos e combates mundo afora.
E. H. Carr, analista internacional e erudito sovietólogo britânico, já afirmou que a história pode ser caracterizada como um diálogo do presente com o passado; interrogamos o ontem para melhor compreender o nosso hoje e, quem sabe até, discernir os contornos do amanhã.
No momento em que John Owen publicou esse trabalho cuidadosamente pesquisado e bem redigido (Princeton University Press, 2010), a opinião pública americana e ampla parcela do ‘comentariado’ midiático dividiam suas aflições e críticas entre uma decepção recente – a crise econômico-financeira e fiscal de 2008 –, de um lado, e, de outro, o desgosto um pouco mais antigo ante o sangrento impasse nas intervenções militares lideradas pelos Estados Unidos no Iraque (iniciadas em 2003 e oficialmente concluídas em 2011) e no Afeganistão (2001, com encerramento oficialmente previsto para 2014, no mais longo envolvimento bélico externo dos americanos em toda a sua história), ambas em resposta aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.
Regime é tomado aqui na consagrada definição de David Easton e associados: o conjunto das “‘instituições, regras operacionais do jogo e ideologias (metas, normas e arranjos preferenciais entre as instituições políticas)'” (p. 2). De Aristóteles aos nossos dias, a pergunta ‘Qual o melhor tipo de regime?’ constitui a questão central da reflexão política.
II
As três ondas estudadas nos capítulos quarto a sexto, que antecederam o presente duelo entre secularismo e fundamentalismo pela supremacia político-ideológica no mundo islâmico – ou seja, a quarta onda identificada por Owen e para a qual ele não enxerga nenhum fim próximo –, abarcam os seguintes períodos, todos eles concentrando numerosos episódios de mudanças violentas de regimes:
(a) Guerras religiosas europeias dos séculos 16 e 17 (católicos X protestantes);
(b) Disputas entre absolutismo, monarquia constitucional e republicanismo, da segunda metade do século 18 a meados do 19; e
(c) Confrontos comunismo/fascismo/liberal-democracia, entre 1917 e 1990/91.
Para maior clareza no encaminhamento de sua investigação, Owen limita-se a analisar as mudanças de regime operadas mediante o emprego de forças militares, excluindo, portanto, do seu foco aquelas produzidas por meio de negociações ou ameaças diplomáticas, sanções econômicas ou ações clandestinas de serviços de espionagem.
A situação de fundo comum a todas essas disputas é uma aguda polarização ideológica, e seus atores são governos e aquilo que Owen chama de redes ideológicas transnacionais (TIN, na sigla em inglês). As TINs, formadas por elites que colaboram na expansão internacional das suas ideologias e dos regimes que as corporificam politicamente, ora manipulam seus governos, ora são por eles manipuladas na luta para derrubar regimes adversários e colocar no poder correligionários estrangeiros.
Caracteristicamente, um país se torna alvo de intervenções violentas provocadas quer por distúrbios internos (guerras civis, revoluções) que ameaçam a segurança de governos interventores, quer por ocupações militares consequentes a guerras externas.
O grande marco da primeira onda é a Guerra dos Trinta Anos, que devastou extensas áreas da Europa centro-ocidental, principalmente o território da atual Alemanha, e a entidade promotora do maior número de intervenções armadas foi o Sacro Império Romano-Germânico, com a finalidade de restaurar o catolicismo em dependências cujas classes dirigentes haviam adotado o protestantismo (luteranos ou calvinistas). O império era uma colcha de retalhos linguística e cultural formada por quase 400 principados seculares e eclesiásticos, repúblicas oligárquicas e cidades comerciais autônomas.
Membro da poderosa dinastia Habsburgo, originária da Suíça, então parte do Sacro Império, o futuro imperador Fernando II iniciou a guerra em 1618, com o envio à Boêmia (hoje República Tcheca) de uma expedição punitiva para vingar três figurões católicos lançados de uma janela por protestantes de Praga. Nenhum dos defenestrados se feriu gravemente; mesmo assim, a escalada de hostilidades acabaria engolfando grande número de reis, príncipes, prelados e aristocratas de ambas as religiões. E, como informa o historiador Joachim Whaley, de Cambridge, autor de um monumento definitivo, em dois volumes, sobre a Alemanha e o Sacro Império, a Guerra dos Trinta Anos, só terminou – com a Paz de Westfália, celebrada em 1648 – depois de ter ceifado um terço da população do império em geral, chegando a 80% em regiões como Würtemberg, Macklenburg e Pomerânia. A tranquilidade e a prosperidade se institucionalizaram quando os europeus adotaram um regime de mútua tolerância religiosa, estimulados pelo exemplo dos holandeses – e também dos britânicos (ingleses, escoceses) na sequência de longa guerra civil no século 17.
III
Durante a segunda onda, assinala Owen que a maior promotora de mudanças políticas coercitivas em países alheios foi a França – em suas fases revolucionária; depois napoleônica; em seguida, restauracionista (retorno dos Bourbons, mas sob uma Carta constitucional); e enfim neobonapartista (presidente-imperador Luís Bonaparte/Napoleão III, sobrinho de Napoleão I). Ora defendendo-se das intervenções francesas, ora contra-atacando-as, ora, mais tarde, a elas se unindo, alinhavam-se as três principais potências absolutistas da Europa (Áustria, Prússia e Rússia), mais a Grã-Bretanha, potência liberal a caminho de tornar-se um império naval aristocrático-burguês em que o sol jamais se punha.
Depois de um século de estabilidade e prosperidade na Europa, da derrota definitiva de Napoleão Bonaparte em Waterloo e do Congresso de Viena (1815) à eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914), teve início a terceira onda, que se estendeu da Revolução Russa de 1917 à desintegração do império com ela iniciado, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em razão da falência múltipla de sua legitimidade ideológica e de seus sistemas econômico, social, político e militar (1991). Nesse período de menos de um século, rotulado pelos historiadores de o breve século 20, os maiores exportadores de mudanças violentas de regimes foram os Estados Unidos (25 casos); a URSS (19); a Grã-Bretanha até o fim da Segunda Guerra Mundial (oito); e a Alemanha nazista, igualmente até 1945 (seis casos).
No total, Owen contabilizou 79 casos de intervenções armadas destinadas a mudar regimes estrangeiros, para a primeira onda; 61 para a segunda; e 69 para a terceira (página 23).
Com base na duração e em outras características gerais desses três primeiros ciclos, Owen não acredita que: 1) a estratégia bushiana de guerra ao terror acompanhada de exportação da democracia, fortemente inspirada por falcões neoconservadores como o ex-secretário-adjunto de Defesa Paul Wolfowitz, tenha sido a derradeira vez que os Estados Unidos promovem mudanças violentas de regimes, no Oriente Médio ou qualquer outro ponto do planeta, no intuito de derrotar o inimigo fundamentalista islâmico, a despeito do expresso repúdio a essa política por grande fatia do eleitorado americano e pela opinião pública em países europeus tradicionalmente aliados da América; e 2) qualquer episódio futuro de engajamento militar externo americano seja capaz, por si só, de pôr um ponto final no jihadismo (em árabe, jihad tem o significado de guerra santa) antiocidental e, sobretudo, antiamericano.
IV
Owen interpreta a natureza da quarta onda como uma guerra prolongada no seio do Islã entre um campo “secularista” – que, no passado, teve como expoentes principais os regimes autoritários laicos do Egito nasserista e da Síria e do Iraque baathistas e hoje é formado, principalmente, por liberais e conservadores moderados adeptos de um modus vivendi entre a religião muçulmana e instituições laicas de origem ocidental – e outro, “fundamentalista”, com suas duas faces ameaçadoras, sunita e xiita, respectivamente exemplificadas por redes terroristas como Al-Qaeda e a intolerância militante da teocracia iraniana, ambas encarando o American way of life como a mais completa tradução de tudo quanto execram no Ocidente.
Na visão de Owen, muito mais que ditar os termos desse antagonismo, os americanos teriam sido atraídos para o seu vórtice pela dinâmica de uma contenda aparentemente sem fim.
O maior dos orientalistas contemporâneos, Bernard Lewis, ensina que as raízes do ressentimento muçulmano remontam a momentos históricos como o da derrota dos otomanos frente a uma coligação de forças cristãs na batalha naval de Lepanto (1571), o que frustrou, ao menos momentaneamente, a pretensão dos turcos de varrer a república de Veneza do Mediterrâneo oriental e ficar com a ilha de Chipre – apesar do grande impacto sobre o moral europeu e de servir de tema ao trabalho de pintores magníficos, como Ticiano e Veronese, a façanha resultaria inútil, pois os venezianos acabaram entregando Chipre ao Império Otomano dois anos depois…; ou, então, o fracasso do cerco turco a Viena (1683), quando tropas aliadas ao imperador Habsburgo Leopoldo I, sob o comando do polonês João III Sobieski (80 mil homens), expulsaram de suas trincheiras, trucidaram ou aprisionaram os 150 mil turcos do grão-vizir Kara Mustafá. Esse evento marcou o começo do fim do domínio otomano sobre a Europa oriental. Mais tarde, a Revolução Industrial, calcada na mercantilização dos progressos científicos, mas também em arranjos institucionais como a economia de mercado, o sistema representativo e a separação Igreja-Estado, deu ao Ocidente uma dianteira sobre o mundo islâmico da qual este jamais conseguiria se recuperar.
O final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) redundou na derrota das ‘potências centrais’, Alemanha e Império Áustria-Hungria, e do aliado destas, o combalido Império Otomano, centro político e militar do Islã, rotulado, já havia bastante tempo, de o homem doente da Europa. De sua implosão nasceu a Turquia moderna, sob a liderança ocidentalizante de Mustafá Kemal Atatürk (1881-1938). O moderno fundamentalismo muçulmano constituiu-se como reação às reformas político-sociais (entre as quais a introdução do alfabeto latino, a apartação de religião e governo e o reconhecimento dos direitos femininos, inclusive o de a mulher não usar véu) que, partindo da Turquia, conquistaram adeptos entre as elites civis e militares do Oriente Médio. Adeptos e adversários.
Já em 1928, o egípcio Hassan al-Banna (sunita) fundava no Cairo a Irmandade Muçulmana, que, aliás, acaba de empalmar o poder no Egito, com o presidente Mohamed Morsi, em consequência da ‘primavera árabe’, conjunto de movimentos que derrubaram ou abalaram significativamente regimes autoritários havia muito estabelecidos no Oriente Médio e no Norte da África. Al-Banna e seus seguidores pregavam a restauração da pureza islâmica e a aplicação da shariah (lei muçulmana tradicional) a todas as esferas da vida pública e privada. Em 1952, o jovem coronel egípcio Gamal Abdel Nasser (1918-1970) encabeçou golpe que derrubou o obeso e patético rei Faruk, tornando-se o homem forte de um regime laico de tendência nacionalista e socializante, movido, ademais, pelo desígnio de unificar o mundo árabe sob sua liderança. Ora, a irmandade era uma organização que desafiava essa pretensão nasserista e, por isso, não tardou até que fosse jogada na clandestinidade. O intelectual Said Qutb, sucessor de Al-Banna, acabou preso, torturado e, afinal, enforcado em 1966. A repressão radicalizaria a posição da Irmandade Muçulmana, e seus quadros que lograram escapar do Egito receberam asilo na Arábia Saudita, de onde se irradiaram pelo Oriente Médio, chegando até a periferia de cidades da Europa que começavam a receber ondas crescentes de imigrantes muçulmanos. Por sua vez, a Arábia Saudita, onde os ‘irmãos’ se refugiaram, além de sede das duas mais sagradas cidades do Islã – Meca e Medina –, era (é) um reino tradicionalista, cuja dinastia, a Casa de Saud, cultiva há séculos uma versão ‘caseira’ e igualmente radical do integrismo islâmico: o wahabismo, fonte da doutrina salafista (significando o retorno às gerações passadas), cujos defensores, em aliança com a Irmandade Muçulmana do presidente Morsi, agora controlam o Parlamento egípcio. Algo assim como o que os antigos navegadores chamavam de viagem redonda…
Quanto à esfera xiita, o ano de 1979 assinalou a derrubada da monarquia autoritário-modernizadora e pró-Estados Unidos do antigo xá do Irã, Reza Pahlevi (1919-1980), por uma revolução logo ‘apropriada’ pelo seu símbolo mais marcante, o aiatolá Khomeini (1900?-1989). Foi assim que a militância fundamentalista ganhou mais um polo poderoso (e perigoso); e a América, um duradouro inimigo.
V
Retomando o fio do relato de Owen: nenhuma onda de mudança de regimes chega ao fim, pura e simplesmente, em virtude das intenções e esforços unilaterais de qualquer um dos antagonistas, não importa quão formidáveis sejam os recursos materiais, tecnológicos e humanos por ele mobilizados. O esgotamento do ciclo decorre de interações complexas, estruturais, de longa duração entre os atores e as suas circunstâncias econômicas, sociais, tecnológicas etc., sempre em mutação, com resultados por vezes imprevisíveis, dificilmente catalogáveis a priori.
Se, como ele recapitula no seu oitavo e último capítulo, a onda do século 20 chegou ao fim, primeiro com a derrocada, em 1945, do fascismo ante uma aliança da liberal-democracia (Estados Unidos e Grã-Bretanha) com o comunismo (União Soviética) e, mais tarde, deste último em face de seu antigo aliado, é preciso lembrar que as duas ondas anteriores (séculos 16 e 17 – católicos X protestantes – e 18-19, de absolutismo X constitucionalismo monárquico X republicanismo) se encerraram, respectivamente, com soluções de convergência religiosa (tolerância) e política (regime híbrido de talhe reformista-conservador, na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e no mundo ocidental desenvolvido de modo geral).
Dessa perspectiva, o melhor desfecho possível para a presente disputa entre secularistas e fundamentalistas islâmicos consistiria na disseminação de regimes mistos, provavelmente espelhados na atual experiência da Turquia, onde, desde 2002, encontra-se no poder o Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP), do premiê Recep T. Erdogan, que tem “raízes islamistas”, mas cujos seguidores “garantem haver abandonado a meta de impor a shariah” ao conjunto desse país (página 268), que segue como um indispensável pilar da Otan e firme candidato à União Europeia.
A julgar, porém, pelas incertezas que cercam a primavera árabe no Egito (queda de braço entre irmãos muçulmanos e salafistas, de um lado, e oposicionistas liberais seculares, de outro) e na Síria, palco de violentíssima guerra civil que já completou dois anos; pela férrea determinação do regime xiita de obter armas nucleares, a despeito das rigorosas sanções ocidentais; e também, é claro, pelo insolúvel conflito israelo-palestino, muita instabilidade e muito sangue ainda rolarão antes que essa quarta onda se desmanche em alguma praia do futuro.
Nesse ínterim, pelo menos espero que o livro de John Owen ganhe uma merecida edição brasileira, tornando-se mais acessível a uma multidão de professores e estudantes de graduação e pós-graduação.
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