Perdi a conta das vezes que fui embora de São Paulo. Eu sou o cachorro que morde o rabo da cidade, e vice-versa. Quando volto, quero ir embora outra vez para ter a oportunidade de retornar e me queixar das mesmas coisas. O problema é que, dessa vez, “as mesmas coisas” não estavam exatamente nos mesmos lugares.
Aos poucos vou me acostumando a driblar os cadáveres caídos no meio do caminho, como se tivesse apenas lembranças de um tempo paulistano – muito recente – que, além de não existir mais, me subtraiu a empatia. Daí que não sei dizer se essas lembranças são boas ou ruins. A diferença brutal de três anos passados no Rio para o aqui e agora de São Paulo me impede até de ser nostálgico. O que resta é ser objetivo, atravessar ruas e driblar cadáveres.
Vamos lá. O centro da cidade, lugar que escolhi para morar desde que atravessei pela primeira vez as galerias da 7 de abril (há 20 anos…), deteriorou-se. E muito. Sob vários aspectos. O ar está muito mais seco e poluído, as ruas imundas, muito lixo e merda recente misturada a merda ressecada. Eu fico imaginando o produto dessa mistura, mais o óleo diesel dos ônibus e todas as fumaças da cidade a evaporar junto com aquilo que num tempo remoto chamávamos oxigênio, imagino toda essa poluição fazendo raves sertanejas nos meus pulmões, e olho pro céu: tão azul e bonito quanto fraudulento. Depois de tragar a cidade e seus excrementos, fica difícil acreditar em qualquer forma de vida em São Paulo. Olhos injetados do prefeito, azuis. E aí atravesso ruas e desvio dos antigos e dos novos cadáveres. Houve uma mutação. Os mendigos – talvez para se defender dos nóias craqueiros – abdicaram da invisibilidade, e agora também fazem parte da paisagem ameaçadora, como se materializassem, de fato, a fumaça que substituiu o horizonte e o ar pesado das ruas.
Quem é que não se compadece da gente que mora nas ruas? A sensação de impotência, derrota e culpa, de certa forma, deve existir até mesmo para as donas-de-casa que trocaram o ser humano pelos poodles – não é piada: acredito na humanidade que existe apesar dos pet-shops. Acredito numa compaixão involuntária (porque a voluntária só causa prejuízos), algo muito comum, essa compaixão, nos tempos idos em que os mendigos, para o conforto das donas-de-casa que se sentiam culpadas, simplesmente eram invisíveis.
Até isso mudou. Hoje tenho medo dos mendigos. O mesmo medo que tenho dos executivos que almoçam no quilo com o crachá espetado no peito. Em São Paulo, o animal urbano sempre foi mal-encarado e cinzento. Assombrado, quase musgo. A diferença para o Rio é que aqui incorporamos a diferença social pelo ódio, e ninguém faz questão de esconder esse sentimento. Os cariocas ainda não descobriram que se odeiam.
Nós nos odiamos sem nenhuma cerimônia. A feiúra é pré-requisito, dos executivos do quilo e dos mendigos. Aqui se cumprimenta com um beijinho e olhe lá, dizemos mãos ao alto como se fosse bom-dia. Túmulo do samba, altar do Rap, dá para compreender…
Faz uns vinte dias estive na Praça Roosevelt. No lugar do Sebo do Bactéria, encontrei um IML. Vale dizer: reconheci o cadáver da felicidade que viveu comigo naquele lugar no começo dos anos zero-zero. Como é que um lugar pode morrer?
Pensando nisso, entendo meus três anos de solidão no Rio de Janeiro. Lá, a cidade não morre, e as almas penadas – as vivas e as mortas – têm abrigo nas tristezas pretéritas, presentes e futuras. São Paulo brocha até alma penada.
Os garçons do Planeta’s envelheceram. A comida do Estadão virou rancho de quartel. Logo na primeira semana da volta, tentaram levar meu celular, e eu bestamente reagi. A parte boa é que botei dois vagabundos para correr, a ruim é que eu acabava de receber boas-vindas. Talvez esse conjunto de coisas e mais o fato de ter sido escorraçado do bar dos Parlapatões, me conduzam a uma conclusão precipitada. Mas eu já havia chegado a essa conclusão (aliás, a palavra é certeza) antes de ter picado a mula pela primeira vez – se não me engano foi no ano da graça de em 1986. Eu já sabia de tudo.
Seguinte. Aquilo que chamam de alma, que no meu caso tem lugar para doer e localiza-se entre a boca do estômago e a ponta dos dedos, minha alma – apesar de mim – está espanada no Rio, lá no alto do Morro do Livramento, entre o morros da Conceição e o da Providência. De onde, aliás, tenho uma vista privilegiada da baía de Guanabara e da ponte Rio-Niterói: passaria várias eternidades assistindo engarrafamentos na hora do rush, gosto disso, do mar engarrafado às sete horas da noite. Mas meu corpo, ah, esse que nasceu e nunca se livrou de São Paulo, cidade-inimiga, esse vai sofrer até a última golfada de ar podre e será enterrado por aqui mesmo – num dia feio, seco e gelado de céu azul.
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