O Rubem Alves alertou: em cada aniversário, a gente ‘desfaz’ uma idade. Então, parabéns são por se completar mais uma etapa. De preferência na boa intenção de usarmos a “data querida” (por quem nos quer bem) como marco para, esperançados, nos reelaborarmos como pessoas mais justas, generosas e corajosas.
O fim do 62º ano vivido tem, para mim, um sabor especial: o da GRATIDÃO.
Nunca, até então – nem com as ameaças das trevas da prisão, tortura e morte no terror da ditadura – eu me deparei de forma tão contundente com essa possibilidade do fim, com essa proximidade de não mais estar. É que o coração, com o seu pulsar vital, é um órgão delicado, carregado de simbolismos e de funções concretas, imprescindíveis.
E o que ficou dessa experiência? Um profundo sentimento de GRATIDÃO. A Deus, pela exigência de entrega, de despojamento: ‘fiat voluntas tua’. Consegui aceitar, reclamando e chorando um pouco, é verdade, mas sem desespero. E ainda ao Todo Poderoso Amor, pelo Amor, incontável e indescritível, que recebi. Daqueles servidores da Saúde Pública que colocaram sua ciência e técnica para me consertar. Daqueles que revelaram um carinho, um afeto, uma solidariedade que se mostrou o remédio mais eficaz, capaz de qualquer cura. Os consanguíneos amados e a família da amizade, escolhida, que harmoniza nossa caminhada. Todos ternos e eternos. Minha rica herança, imorredoura e já compartilhada. Dádiva da vida, razão de estar e continuar, razão de ser. Pássaros, anjos, dentro de nós.
Gratidão vem de graça e tenho que ser fiel a essa, tanta, que recebi. Proclamá-la é um dever e significa, mais e mais, ser-com-os-outros, “na calma, cálida e intensa mutualidade do amor. Esta é a fonte da verdadeira generosidade e do autêntico entusiasmo – Deus comigo!”(Hélio Pellegrino, “Lucidez Embriagada”). Se as estrelas são tantas, só mesmo amor…
Viver é queimar o carvão do tempo de que somos feitos – passagem, finitude, chama que se consome e consuma – para gerar energias que transformem nossas relações, cada vez mais marcadas pelo individualismo, pela posse e pela competição. Viver é morrer a cada dia para o ego, e sentir a perfeita alegria de servir e de curtir o sagrado em tudo o que nos cerca, na maravilhante natureza da qual somos parte – estrela e estrume, sombra e lume.
Viver é maturar como fruta boa, integrada à árvore, jamais esquecendo das raízes que nos nutrem. E “amadurecer é perder o orgulho, é descobrir a gratuidade do mundo”(HP), inserindo-se nele de forma cada vez menos fragmentada e cada vez mais sensível e serena. Para ser grande, sê inteiro!
Viver é prosseguir na sinuosa ‘avenida Brasil’ real rumo ao futuro, tecendo com o novelo do tempo nossa história comum, combatendo as atrocidades contra a dignidade humana. Pelos que nos antecederam, nossos pais e tantos outros que moram na saudade. Pelos que nos sucedem, “no arco do movimento de tudo, pois as coisas navegam na direção de um porto que não chega nunca, e cada porto é véspera de outro, até à luz de Deus, começo, meio e fim de todos os portos. Viver é saber-se construção inacabada cujo projeto é inacabar-se”(HP)
“Quem canta reza duas vezes”, disse Santo Agostinho. Nos momentos cordiais ou cruciais da vida – e agora me foi dado viver o encontro de ambos –, a música sempre aparece como trilha melódica do acontecido. Aos querido(a)s rouxinóis da minha precária e abençoada existência, uma linda composição de quem viveu situação similar:
“Rouxinol tomou conta do meu viver/ chegou quando procurei/ razão pra poder seguir/ Quando a música ia e quase eu fiquei/ Quando a vida chorava mais que eu gritei/ Pássaro deu a volta ao mundo e brincava…/ Rouxinol me ensinou que é só não temer/ cantou, se hospedou em mim…/ Todos os pássaros, anjos/ dentro de nós/ uma harmonia trazida dos rouxinóis” (Milton Nascimento).
Mais do que nunca, vamos juntos. Assim seja, sempre, de geração em geração!
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