No tempo de estudante de medicina, tinha um colega de turma, o Jota (apelido fictício), que, apesar de ter parcos recursos financeiros (como eu), vivia sempre de roupa simples e de impecável friso nas calças. Moreno, magro e de cabelo cacheado, assim como a roupa, impecavelmente penteado. Era tranquilo, altivo, de poucas palavras e “amigo” de todos.
Todos e todas um dia fomos jovens e, como sempre, os jovens gostam de perturbar um ao outro. Era assim também naquela época e naquela turma da faculdade de medicina.
Alguém da turma descobriu que o pior dos mundos para o nosso colega era despenteá-lo. Não precisava de tanto, bastava tirar um único fio de cabelo do lugar, que ele ficava irritado. A partir desse dia, periodicamente o sossego dele era roubado por uma mão gozadora que passava sobre sua cabeça.
Num dia qualquer do quarto ano da faculdade, faltando dois anos para terminar o curso, chega a notícia de que o nosso colega estava internado num hospital psiquiátrico. Não sei quantos ou quantas dos colegas de turma foram visitá-lo no manicômio. Sim, este era o nome dado, e que às vezes ainda se dá, aos hospitais psiquiátricos.
Assim como eu, ele era do interior do Paraná, portanto sem família em Curitiba, e todos nós, interioranos com alguma dificuldade de dinheiro e de amigos, éramos mais chegados, ou melhor, mais solidários, uns com os outros. Nesta condição de amigo solidário, fui visitá-lo no manicômio.
Do quarto para o quinto ano da faculdade de medicina é quando boa parte dos estudantes começam a decidir que especialidade vão fazer. Desde o início, entre todas as especialidades, decidi que não seria cirurgião e, ao longo do quarto e quinto ano, fui eliminando as matérias, e o que acabou me restando foi mesmo a pediatria. Mas, para chegar nela, tive que eliminar a psiquiatria como especialidade.
Eliminei a possibilidade de ser psiquiatra no dia em que fui visitar o meu colega de turma. Entro no manicômio no horário de visita e vejo a cena que jamais esperava ver: homens e mulheres caminhando de um lado para o outro, cada um “dono de si”. Dono de si, maneira de dizer, pois o outro ao lado não existia. Perguntei-me se por si só cada um existia, e mesmo se eram vistos e tratados como seres humanos?
Era hora de visita, e os que podiam receber visitas estavam no pátio. Eram homens e mulheres de “uniforme”, digo, vestidos todos iguais, de olhares apagados, cabisbaixos, de movimentos lentos, fala pastosa e caminhando de um lado para o outro, sem saber (ou sabiam?) porque caminhavam.
Neste meio, encontro o Jota, meu colega de turma. Estava de “uniforme”, olhar sem brilho, arrastando os chinelos e, como todos, caminhando de um lado para o outro. Quando me viu não esboçou nenhum gesto, nem sorriso, e tampouco demonstrou altivez. Sua barba estava por fazer e seus cabelos estavam desgrenhados e, sobre o ombro, uma quantidade enorme de caspa. Neste dia, decidi não fazer psiquiatria.
No último dia 27, completaram-se quatro anos da morte de Austregésilo Carrano Bueno. Carrano, como era conhecido, foi dramaturgo, escritor e, acima de tudo, militante – até o fim de sua vida – pelo fim dos manicômios no Brasil. Participou ativamente como representante dos usuários do SUS (em saúde mental) na Comissão Nacional de Reforma Psiquiátrica do Ministério da Saúde.
Conheci-o com seus muitos bichos, com certeza, alguns deles com mais de sete cabeças. Inquieto e irrequieto,estava sempre disposto a ajudar quem dele precisasse, principalmente se a necessidade era em relação a saúde mental.
Após sua morte, o Movimento de Luta Antimanicomial instituiu o Prêmio Carrano de Luta Antimanicomial, que foi entregue a alguns cidadãos e entidades no último dia 19 de maio. Pela sua história de luta e de vida, em 2003 Carrano recebeu uma homenagem das mãos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O nome de Carrano tornou-se conhecido nacionalmente após o seu livro “Canto dos Malditos” ter dado origem ao filme “Bicho de sete cabeças”.
A última informação que tive do Jota, mais ou menos dez anos atrás, é que era bom médico e estava branqueando a cabeleira. O que ele não sabe até hoje é que aquela visita ajudou-me a decidir a especialidade a fazer.
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