Istambul (Turquia) – Jurgen Gotschilish é um jornalista alemão, correspondente na Turquia de vários jornais do seu país e da Áustria. Mora aqui há 15 anos, casado com uma turca. Seu contato me foi passado por Daniel Cohn-Bendit. Nos seus anos de Turquia, ele assistiu à irresistível escalada do AKP, o partido “islâmico-liberal” de Recip Erdogan. “Ele fez coisas boas, como ter acabado com o golpismo militar, mas, depois da segunda reeleição, o poder lhe subiu à cabeça e ele agora está batendo de frente com a Turquia secular com toda força”, explica Jurgen.
Erdogan decidiu acabar com o Parque Gezi, junto à praça Taksim, e com o centro cultural de Kemal Ataturk para reerguer uma antiga caserna otomana que funcionaria como shopping. Na visão de Jurgen, não foi apenas um erro urbanístico crasso e uma possível negociata imobiliária. Foi uma revanche sobre a banda laica e cosmopolita da população de Istambul. Com efeito, a Praça Taksim e o parque ficam no epicentro do que seria o centro secular dessa grande metrópole de 12 milhões de habitantes, dividida entre a Europa (onde fica a praça) e a Ásia pelo Bósforo, dito “mar”, mas de fato canal.
A Praça Taksim, que não chega a ser muito interessante – o parque, sim, é bacana –, deságua na famosa rua de pedestres do que aqui chamaríamos de “baixo” (embor alto) Istambul: a rua Iztiklal. Para os islâmicos mais rigorosos, aquilo deve ser a encarnação do que faz o demônio aos que se afastam dos preceitos do Corão. Uma rua cheia de dia e à noite até altas horas, com comércio de todo tipo, bares e jovens de todas as tribos possíveis e imagináveis. Moças (tantas bonitas!) em trajes “imodestos”, para utilizar o jargão islâmico, piercings, tatuagens, ocasionalmente casais gays. Enfim, pra todos efeitos, Sodoma & Gomorra reencarnada.
De 2003, quando estive aqui pela primeira vez, até hoje, o número de mesquitas parece ter aumentado bastante e Jurgen me confirma que de fato o governo do AKP construiu muitas novas por toda a cidade. O clero funciona vinculado ao Estado. O que antigamente era a forma do Estado kemalista de assegurar o controle do poder secular sobre as mesquitas, no governo do AKP, tornou-se um instrumento de fomento da religião. Enquanto durou a queda de braço de Erdogan com os militares, ele não se preocupou em fazer avançar uma agenda precipuamente antissecular. Mas, depois de sua segunda reeleição e de prisões em massa que desarticularam o “núcleo duro” dos militares kemalistas, ele se sente mais à vontade para travar uma batalha cultural.
A proibição da venda de bebidas alcoólicas depois das 22 horas virou um grande cavalo de batalha. Ela deve entrar em vigor daqui a três meses e há uma grande discussão aqui se “pega” ou “não pega”, pois, aparentemente, na Turquia também há “jeitinho brasileiro” com as leis, pelos menos com algumas delas. Durante os acirrados debates no Parlamento, Erdogan, cujo pavio torna-se a cada dia mais curto, cometeu o que até pouco tempo seria considerado um sacrilégio lesa-pátria. Relacionou a bebida ao fim do pai da pátria, Kemal Ataturk, que morreu de cirrose hepática, em 1938.
Ao confrontar o simbólico secular – promover o véu para as mulheres, multiplicar mesquitas, limitar o álcool e, finalmente, querer demolir o centro cultural Ataturk e acabar com o Parque Gezi –, Erdogan, depois de uma década de poder, começa a bater seriamente de frente com a outra metade do país.
Essa metade laica é sub-representada no Parlamento graças à monumental incompetência dos políticos kemalistas e da superdividida esquerda turca, mas, sobretudo, por causa de uma senhora “cláusula de barreira” de 10%. Teoricamente, ela existe para impedir os curdos de terem acesso ao Parlamento, mas, na verdade, acaba atingindo quase todos os outros partidos, com exceção do CHP, o Partido do Povo, kemalista.
Os acontecimentos da Praça Taksim e as jornadas de protesto da juventude turca ainda não têm consequência evidente sobre a política parlamentar, eleitoral. Houve um abalo inquestionável na popularidade de Erdogan, seu partido apresenta algumas divisões, particularmente entre ele e o presidente da República, Abdullah Gül. Mas Erdogan continua a ser, de longe, a grande liderança política do país. Segundo Jurgen, as chances da oposição laica passam inicialmente pelas eleições municipais no início do próximo ano. Particularmente, a disputa para prefeito de Istambul. “Se a oposição apresentar um candidato único, expressivo, leva” garante o jornalista alemão. Isso porque “o prefeito de Istambul do AKP está desmoralizado, tido como um joguete na mão de Erdogan, que, como primeiro-ministro, continua “de fato” governando a cidade”, desde Ankara. Erdogan fora prefeito de Istambul nos anos 90 e, até hoje, não largou completamente o osso.
As chances da oposição passariam por uma aliança entre nacional-kemalistas e a esquerda, a se forjar nas eleições municipais. As próximas eleições parlamentares são em 2015. Há eleições presidenciais previstas para o próximo ano também e Erdogan sonha com uma presidência “forte”, à francesa, no lugar da cerimonial exercida pelo seu amigo e agora adversário dentro do partido: Gül. Por uma regra existente, ele, teoricamente, não poderia permanecer como primeiro-ministro depois de 2015. Mas a maioria dos observadores considera que não há mais tempo para uma mudança constitucional nesse sentido, mesmo que ele conseguisse apoio parlamentar para tanto.
Empresários
Serhan Suzer é um jovem empresário turco que trabalha com energia solar e vem de uma família de grandes incorporadores. Ele é cônsul honorário da Costa Rica em Istambul. Representa tipicamente um segmento do empresariado que se acomodava mais ou menos bem com o regime do AKP e crescia com o boom econômico turco dos últimos dez anos. Agora sente-se desconfortável com o rumo atual de Erdogan e teme que ele tenha efeitos negativos sobre a economia. Não se sente representado pela oposição kemalista nem pela esquerda. “Na Turquia, 65% do eleitorado tende mais para o conservadorismo e 35% mais para a esquerda. O AKP acabou ocupando o terreno da direita e centro-direita. Agora há uma parte desse eleitorado que poderia deixá-lo, mas falta um partido de centro-direita liberal, laico”. Faz uma pausa e pensa. “Como o da Angela Merkel”, conclui.
Apesar dos atuais problemas internacionais e internos de Erdogan, ele parece manter ainda uma considerável margem de manobra, sobretudo se moderar sua agressividade com o segmento laico da população, que forma a maioria da classe média turca. Uma questão importante será o destino de sua iniciativa de paz com os curdos do PKK. Se for capaz de pacificar a questão curda com concessões políticas (uma cláusula de barreira menos drástica que os 10%) e culturais (reconhecimento da língua curda), ele possivelmente ganhará mais uma robusta sobrevida política. A questão, no entanto, parece periclitante, agravada pela guerra civil na Síria e pela criação de uma virtual região autônoma curda naquele país, a exemplo do que já aconteceu no Iraque.
A oposição, por sua vez, parece ter diante de si o desafio de ampliar seus horizontes e descolar do AKP os segmentos não religiosos que o apoiam em função do sucesso econômico e da estabilidade social dos últimos anos.
Batucada
Assim como no Brasil, é muito difícil antever quais as consequências políticas futuras das recentes manifestações. Por agora tudo está calmo. Ou quase tudo. No domingo (28), caminhando à noite pela rua Iztaklal, vi um grupo de uns 20 jovens “gênero” black bloc, gritando, batendo palmas e batucando numa perua da polícia que passou por eles. No alto da rua, junto à Praça Taksim, um grupo de uns 50 policiais antidistúrbios com seus escudos e capacetes com viseira.
A gritaria não “pegou”. As pessoas passavam indiferentes, algumas olhando feio para a rapaziada. No momento, o Parque Gezi está garantido por uma liminar e o governo baixou um pouco a bola. Mas nada está de fato jogado. São férias de verão.
Quando o outono chegar e as aulas voltarem, pouco se sabe…
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