É difícil encontrar comportamento mais tolo do que ser maniqueísta. Tolo e com imenso potencial de ser perigoso. Qualquer criança de dez anos minimamente equilibrada já consegue começar a perceber que não há nada nem ninguém que seja totalmente bom. E que, em contrapartida, não há nada nem ninguém que seja mau em sua totalidade.
Se alguém ultrapassa essa idade acreditando sinceramente nisso, adota um comportamento cuja ingenuidade tem imenso potencial de perigo. É a chave para os preconceitos, irracionalidades, ódios e intolerâncias. Por conta de tais crenças, muita barbaridade já foi cometida ao longo da história. Aquele, porém, que ultrapassa os dez anos de idade sabendo que o mundo não é mesmo dividido entre mocinhos e bandidos, mas adota deliberadamente um discurso maniqueísta, porque ele convém a seus interesses, é imensamente mais perigoso que o ingênuo. São os manipuladores, os mistificadores.
O Brasil experimentou um significativo avanço durante a era Lula. Da estabilidade econômica herdada do governo Fernando Henrique Cardoso, Lula soube não apenas mantê-la, mas, a partir dela, fez o país atingir um estágio de desenvolvimento social nunca visto. Hoje, mais de 60% da população já se enquadra acima da classe média. O desemprego é baixo, e o país resiste muito bem a crises econômicas que atingem de forma bem mais forte países mais desenvolvidos, especialmente na Europa. De coadjuvante nas questões internacionais, o Brasil passou a ser um dos protagonistas, a partir de posicionamentos mais firmes, especialmente após o patrocínio da ideia de criação dos Brics. Se Lula atingiu patamares de popularidade nunca antes vistos e elegeu com facilidade sua sucessora, nada disso deve ser surpresa. É o justo reconhecimento que a população rendeu a seu governo.
Mas a era Lula não significou a passagem de um santo milagreiro pelo governo, que resolveu todos os problemas e nada mais deixou para ainda ser resolvido. Ainda continuamos muito longe de morar no paraíso. O país ainda padece de profundas mazelas. E uma das que mais nos causa prejuízo é a corrupção pública, o incalculável desperdício de dinheiro mal utilizado ou – pior – desviado, que desde sempre é regra. Lula não resolveu esse problema. E muitas vezes, ao contrário, contribuiu no sentido de banalizá-lo. Como, por exemplo, quando disse em Paris, numa reação às denúncias sobre o mensalão, que aquilo que se descobria era algo que “todo partido político faz, sistematicamente”.
Este colunista tem a profunda convicção de que qualquer análise que não compreenda os dois aspectos acima – a profunda mudança sócio-econômica ocorrida no Brasil nos últimos anos e o não enfrentamento que persiste dos maus hábitos da elite política nacional – é incompleta. E, incompleta, desinforma. Estão igualmente errados aqueles que só enxergam defeitos e os que só veem acertos na era Lula e na sua continuação com Dilma. Nenhum jornalista que não se esforce em procurar os aspectos positivos e negativos do fato que observa e apura está exercendo honestamente a sua profissão.
Seja por crença sincera seja pela conveniência, a verdade é que nos últimos tempos muitos veículos e jornalistas parecem ter resolvido trocar a prática da sua profissão pelo exercício maniqueísta de separar o país entre mocinhos e bandidos. Aí, sobram adjetivos e faltam fatos. Sobram opiniões e faltam análises. Falta equilíbrio, sobra torcida. Para completar o quadro, resolveram falar uns dos outros. Ao apontar os defeitos dos jornalistas do lado oposto, cometem defeitos iguais ou piores. O resultado final deve atender aos grupos políticos pelos quais optaram. Ao brasileiro comum, ao leitor, que não tem nada com isso, o que sobra, porém, é muito pouco, quase nada.
Não é que o exercício do jornalismo não mereça – e não precise – ser analisado, investigado e criticado. Merece e precisa. Desde que isso se faça de uma forma equilibrada, que não seja carregada de imprecisões, preconceitos e, principalmente, de interesses políticos não confessados. Assim faz, por exemplo, há anos o Observatório da Imprensa. O problema é que enquanto parte da imprensa ocupa-se justamente em fugir do equilíbrio, adota lados e ocupa a sua trincheira, aqueles que deveriam ser os verdadeiros alvos da investigação jornalística na Esplanada dos Ministérios riem à toa e soltam foguetes. Adoram essa situação, em que o publicado pode ser relativizado porque deixou de ser notícia para virar panfleto.
Felizmente, tal comportamento ainda não se generalizou. Se alguém quiser conhecer um pouco mais a respeito daqueles que comemoram e suspiram de alívio por terem sido deixados de lado para que jornalistas e veículos prossigam no exercício de se agredirem mutuamente, recomenda-se a leitura do novo livro do veterano repórter investigativo Lúcio Vaz, Sanguessugas do Brasil (Geração Editorial). Partindo do termo que se popularizou após a série de reportagens que ele publicou no Correio Braziliense sobre o esquema que desviava dinheiro de prefeituras para a compra de ambulâncias – o esquema dos Sanguessugas –, Lúcio Vaz comenta que todos aqueles que contribuem para roubar e desviar o dinheiro público, impedindo que ele efetivamente chegue à ponta das ações que o ainda pobre e desigual Brasil necessita, sanguessugas são.
São 12 histórias de corrupção e de desvios de dinheiro, ameaças e até assassinatos. Como repórter, Lúcio Vaz viajou por vários pontos do país para apurá-las e contá-las. São textos concisos. Ninguém vai encontrar adjetivos demais, nem exclamações ou discursos indignados. Até porque a indignação de quem lê virá dos fatos narrados. Como se espera de qualquer bom texto jornalístico.
Deixe um comentário