Fernando Loschiavo Nery*
“O direito é fato, valor e norma.” Miguel Reale
Os fatos que compõem o cotidiano das pessoas mudam os valores, e a medida que tais valores mudam, demandam novas normas que supram as atuais necessidades da sociedade. Contudo, enquanto as novas leis não chegam, cumpre ao Estado, por meio do Poder Judiciário, atender caso a caso, suprindo-lhes a falta. Esta complexidade de atender as necessidades da sociedade, através da pacificação dos conflitos, adequando os casos concretos aos valores atuais, é a ocupação do Direito.
Na visão de Miguel Reale, o Direito é como um bolo de três sabores, sendo os sabores suas finalidades, as quais se complementam mutuamente: a factual, a axiológica e a normativa. Isso implica dizer que o Direito sempre demandará o estudo sociológico e filosófico, além do normativo, ou seja, o Direito não se limita ao que está previsto em lei, pois acompanha a dinâmica do tecido social.
Voltando esta compreensão para o direito de família, observamos que foram profundas as mudanças nos valores sociais, em especial a partir da Constituição Federal de 1988, impulsionadas pelo fenômeno da repersonalização do Direito Civil, que em proteção ao princípio da dignidade da pessoa humana afastou as desigualdades entre os pais, entre os filhos, entre as pessoas que compõem o núcleo familiar.
Dentro dessa concepção atual de família, podemos afirmar acompanhando Paulo Lôbo Netto, que não mais se constitui família por finalidade econômica, religiosa tampouco procriacional, pois esta se estabelece e se fundamenta no afeto, passando este a ser um novo valor jurídico protegido. A desburocratização do divórcio é maior prova de que o mais importante é o afeto, pois quando este deixa de existir, não haverá mais motivos para manutenção do casamento.
Então, se o novo valor social é um outro sabor do bolo (Direito), como nos ensina Miguel Reale, parece interessante notar que está se estabelecendo uma tendência nas decisões dos tribunais, no sentido de igualar o tratamento jurídico às espécies familiares.
Basta lembrarmos a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu a união estável dos casais homoafetivos, formados por pessoas do mesmo sexo, que tornou possível a conversão em casamento, como já vem ocorrendo no Brasil, através de pedido de habilitação por processo judicial.
Outra curiosa, recente e não menos importante decisão procedeu do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no mês de novembro de 2012, a qual permitiu a uma companheira em união estável por 30 anos, passar a adotar o sobrenome de seu companheiro, como se casada fosse. No acórdão, a relatora, ministra Nancy Andrighi, observou com precisão que, ao negar essa possibilidade aos companheiros, a Lei de Registros Públicos (Art. 57, par. 2, da Lei 6.015/73) estaria se opondo a valores sociais atuais, merecendo por isso ser afastada.
Redigida na época em que o casamento era indissolúvel (não previa a possibilidade de divórcio), a lei excluía tal hipótese, com uma agravante porque ambos eram solteiros. Quando então, o STJ operou a interpretação dos fatos e valores sociais no caso concreto à luz da Constituição, terminou concluindo que, demonstrada a concordância dos companheiros e não havendo prejuízo a terceiros, exigir que se casem simplesmente para poderem exercer por direito aquilo que já possuem de fato há 30 anos, se configuraria em ato cruel e injusto.
Poucos sabem, mas é possível requerer judicialmente a mudança de nome do casal em razão de união estável (como se faz no casamento), o que também se costuma fazer nos pedidos de união estável homoafetiva.
Os sabores do bolo (Direito) estão presentes, e a tendência das decisões dos tribunais demonstra que, aos poucos, cada vez menos diferenças haverá no tratamento jurídico entre as espécies familiares. Afinal, nos dias de hoje, o Direito requer muito mais o estudo sociológico e filosófico do que o normativo propriamente dito.
* É professor e advogado em Direito das Famílias e Sucessões do escritório Braga e Balaban Advogados, especialista em Direito Processual Civil e mestrando em Direito Civil pela PUC-SP – fernando.nery@bragabalaban.com.br.
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