Marluze Pereira*
O caso “chororô na delegacia”, veiculado pela Band, não humilha e violenta somente ao “detento”, mas a toda a sociedade baiana (e brasileira), a todas as pessoas que, como o jovem, estão em posição de vulnerabilidade, e a todas as pessoas que, como eu, já não suportam mais integrar um sistema que permite que espetáculos macabros – de desrespeito e violações decorrentes do abuso do poder frente a uma população fragilizada e vulnerável civicamente -, sejam estimulados. Sou PESSOA como o jovem, e se tivesse nascido em sua condição social, poderia estar em seu lugar, sendo humilhado por toda uma facção estúpida e fria da sociedade, que vê na fragilidade de seus membros a transformação destes em “presas fáceis” para alcançar o lucro através “do circo dos horrores”.
Veja aqui o vídeo:
Não se trata apenas da indignação frente à exposição ao ridículo, à humilhação, à violência psicológica e moral, mas da indignação diante de uma violência simbólica gritante, que em um único episódio denuncia toda a podridão dessa estrutura social que vivemos e da qual somos parte, mas que, nem por isso, precisamos alimentá-la.
Não gosto das generalizações, tenho cautela ao usá-las, pois sei que, assim como ajudam a organizar os eventos recorrentes, apresentam o grande perigo de esconder as diferenças, a novidade, a mudança e de se cristalizarem em preconceitos irracionais facilmente manipuláveis. Não vou aqui fazer um discurso racista que iguale “branco a mau” e “negro a vítima” (nem o oposto), até porque, nem poderia. Entre a posição simbólica e social da repórter e do jovem, estou muito mais próxima dela enquanto cor da pele, estética, situação social e educacional. Sou branca, loira, meu cabelo é liso, costumo usar rabo de cavalo, sou mulher, nível superior e condição social que me permite dignidade e posicionamento. No entanto, esses atributos em nada me aproximam dessa mulher como PESSOA, mas me permitem um olhar do lugar de onde ela se encontra, um lugar de desigualdade e “poder” frente a um jovem negro (algemado) pobre, morador de rua, sem educação, sem direito, sem suporte social e em sua dignidade violada, não apenas nesta reportagem (vale a ressalva!), mas desde sempre, por uma estrutura social doente e que ajuda a adoecer a seus membros.
E quando falo em “adoecer a seus membros”, não estou falando do jovem negro – o seu adoecimento social é claro, sabemos todos o que sofreram na carne, desde sempre, em consequências das privações, carregando nas costas o peso da herança social de nossa “historicidade” -, mas falo da “doença social” que ataca aqueles que ocupam uma posição de “poder de fato”, como no caso a repórter (mas poderiam ser os políticos corruptos ou qualquer um que acredita que pode humilhar, “coisificar”, torturar, explorar, violar, enfim, abusar do vulnerável). Essa é a pior doença, a doença de não reconhecer que o outro, assim como o próprio eu, é PESSOA, é gente.
A doença da falta de empatia é a doença do indivíduo que, ao se sentir superior, usa dessa relação iníqua de poder para fazer do outro o que bem entender, e se o capricho assim quiser, de esmagá-lo. Sinceramente, nossa estrutura social tem favorecido a difusão deste tipo de doença…
Essa é a doença do dono de escravo, do capitão do mato, dos torturadores, dos nazistas. É a doença da psicopatia, da coisificação, do tudo pelo lucro, do dane-se o mundo, do capitalismo selvagem. Estou cansada desse mundo adoecido, estou cansada do “riso” de alguns ao ver naquele jovem um “ignorante, preto e pobre” que não sabe pronunciar palavras, que não sabe distinguir termos, ao invés de se sentir envergonhado por fazer parte de um sistema que ainda, em pleno século XXI, permite que PESSOAS, como esse jovem, não tenham educação formal, não tenham suporte social, não tenham “saúde cívica”, não tenham condições dignas de existência. Estou cansada dessas pessoas que acharam que a repórter foi “escrota”, associando “escrotidão” a algo admirável. Como dizia Renato Russo, “nos deram espelhos e vimos um mundo doente”.
Mas não quero que confundam o meu cansaço em relação a essas pessoas com um suposto cansaço em relação a exigir e lutar pela “cura” dessa doença enquanto instância do social. Para isso não há cansaço! Até porque, para expressar este desejo também já não há vergonha… Aliás, minha motivação se alimentar de um “nojo” compartilhado em relação a essas banalizações e abusos de poder, assim como se fortalece a partir da percepção dos pequenos, mas significativos atos, que buscam, em consonância com o meu desejo, uma sociedade “melhor”; atos que a todo custo tentam desmoralizar, infantilizar e desacreditar, para fazer com que a pessoa perca sua força transformadora da sociedade.
Acredito no poder do Estado, o que em nada se confunde com uma crença cega em um Estado qualquer. Acredito no poder do Estado enquanto “potência”, enquanto uma fonte que tem grande influência na modelagem da sociedade, e que no caso, pode servir para a construção de uma sociedade mais justa. Sei, no entanto, que isso não vem de graça, sei que em muito vem da pressão social como, aliás, esta que está sendo feita neste caso, contra violações à dignidade humana em programas policialescos ou contra a corrupção ou outras manifestações a favor da “saúde social”. Pode parecer sonho, pode parecer utópico, pode ser “apenas” uma ideia, mas assim como já descobri as armadilhas por detrás das generalizações, também já descobri que o poder das ideias, exatamente por parecer “frágil e inexistente”, não é passível de morte… salvo pelo esquecimento.
*Psicóloga, mestranda em Família na Sociedade Contemporânea
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