Edson Sardinha |
O relator da CPI dos Grupos de Extermínio no Nordeste, deputado Luiz Couto (PT-PB), é um padre condenado à morte. A sentença foi dada pelo crime organizado de seu estado desde quando passou a denunciar a participação de autoridades locais em ações criminosas. Há quatro anos, ele recebe proteção da Polícia Federal, que mantém a guarda inclusive durante as missas celebradas pelo religioso. As ameaças não intimidam o padre. “Medo eu tenho, mas se for usá-lo, não farei nada”, diz. Após um ano de investigações, o relator constatou que os grupos de extermínio são o braço armado do crime organizado. O tráfico de drogas e armas e roubo de cargas e armas financiam a ação desse tipo de milícia clandestina. Leia também Publicidade
As vítimas, segundo o relatório de Luiz Couto, são quase sempre negras, pobres, desempregadas ou subempregadas e pessoas de baixa escolaridade. Muitas delas, envolvidas em ações criminosas desorganizadas. Outras, com origem nos movimentos sociais. Publicidade
Se o perfil das vítimas é caracterizado pela exclusão social, o dos criminosos varia conforme a função. Na hierarquia dos grupos de extermínio, revela o deputado, há espaço para todos: do desembargador ao pistoleiro. “É um Estado transversal, porque é dentro do próprio Estado que eles estão penetrando e assumindo essa postura criminosa”, diz o relator. PublicidadeZona da morte Uma das zonas de maior incidência desse tipo de crime está na divisa entre Paraíba e Pernambuco, entre os municípios de Itambé (PE) e Pedras de Fogo (PB). O relatório denuncia o envolvimento de um vereador e um ex-prefeito da cidade pernambucana com os grupos de extermínio. Em depoimento à CPI, um jornalista ameaçado de morte denunciou inclusive a suposta participação de um deputado federal alagoano com esse tipo de crime. Como não houve apresentação de prova nem de indícios contundentes, o nome do parlamentar acabou ficando de fora da lista apresentada no relatório final. Congresso em Foco – Por que o relatório da CPI dos grupos de extermínio ainda não foi votado? Luiz Couto – A justificativa está no mau funcionamento da Câmara neste semestre, em virtude do processo eleitoral, e no esforço de alguns parlamentares para que o relatório final não fosse apresentado antes das eleições. Isso porque citávamos o envolvimento de algumas autoridades que se candidataram este ano ou que eram ligadas a forças políticas com os grupos de extermínio. Houve uma ação organizada para que o quórum não fosse atingido e não tivéssemos a reunião para discutir e votar o relatório. Estamos tentando, pela segunda vez, prorrogar os trabalhos da comissão para evitar que as conclusões sejam arquivadas. “Houve uma ação organizada para que o quórum A que tipo de ação organizada o senhor se refere? Quando aparece nome de forças políticas ligadas a parlamentares numa CPI há toda uma tentativa de boicotar e não permitir que o relatório seja aprovado. Mesmo quando o relatório é aprovado, há uma tentativa de excluir esses nomes, a exemplo do que ocorreu na CPI mista da Exploração Sexual Infantil (o vice-governador do Amazonas, Omar Aziz, acusado de explorar sexualmente de crianças e adolescentes, foi excluído do texto final após pressão de parlamentares da bancada do estado). Já sabemos que hoje tem gente se organizando para retirar nomes citados na CPI do Extermínio. “Quando aparece nome de forças políticas ligadas a parlamentares numa CPI há toda uma tentativa de Os grupos de extermínio também têm seus tentáculos no Congresso Nacional? Claro que tem. O crime organizado tem um braço armado muito forte, que são os grupos de extermínio. Como o crime organizado, o grupo de extermínio tem vertentes no Judiciário, no Ministério Público, no Executivo e no Legislativo. Eles têm mandantes e protetores. A CPI corre o risco de não dar em nada? Muitas vezes as CPIs não dão em nada e parecem um faz-de-conta. Queremos que esta CPI assuma seu papel de investigar, apurar e encaminhar as devidas providências ao Ministério Público e ao Judiciário. Defendemos o controle externo do Judiciário, porque ele muitas vezes favorece o crime organizado quando pessoas vinculadas a políticos nunca são punidas. A impunidade é grande e alguns indivíduos continuam dizendo que, enquanto eles estiverem ali, nada acontecerá contra aqueles que estão ao seu redor. Qual é a participação do poder público nesse processo? Em muitos casos, há omissão generalizada e conivência, proteção feita por figuras públicas e até participação direta de autoridades em ações criminosas. Ou enfrentamos de forma articulada, em ação conjunta, ou não faremos o combate ao crime organizado neste país. Defendemos que os bens desses criminosos sejam confiscados, que haja uma inversão da prova – eles é que têm de provar que esses bens foram conseguidos por atividade lícita – e que o combate à corrupção seja sistemático. Essa, aliás, é uma porta pela qual muitas pessoas recebem recursos e terminam favorecendo o crime organizado. “Ou enfrentamos de forma articulada, em ação conjunta, ou não faremos o combate ao crime organizado neste país” Como mudar essa realidade se o crime organizado está infiltrado nos três Poderes? Estamos tentando fazer isso aqui. É preciso que a sociedade toda tenha consciência. Os parlamentares foram votados por ela. O Estado e a sociedade civil têm de cumprir sua missão. Muita gente está disposta a ajudar a desbaratar a ação do crime organizado. Basta dar proteção a essas pessoas. Elas não podem ficar ao deus-dará, precisam de ter assegurada a proteção às suas vidas. Infelizmente, os programas que nós temos ainda são insuficientes para que garantir esse direito. O relatório propõe, nesse sentido, alguma medida prática? Um dos aspectos que defendemos no relatório é a instituição da proteção para o preso colaborador – aquele que já foi membro de organização criminosa, que a conhece profundamente e que pode ajudar nas investigações. Mas ele, infelizmente, não tem direito a essa proteção. Se der algum tipo de depoimento, aparecerá morto uma semana depois dentro da própria cela. Como os grupos de extermínio podem ser caracterizados? O perfil desses grupos é composto por policiais militares e civis, agentes penitenciários, ex-presidiários, pistoleiros e vigilantes de empresas privadas que oferecem serviços de segurança. O esquema age por meio de uma rede integrada por mandante, gerente, apontador, executor e protetor. Qual o papel de cada um deles? Numa ponta, há o mandante, que pode ser pessoa física ou jurídica, que nunca aparece, dá as ordens e determina a ação. Em muitos casos, é uma pessoa reconhecida e até admirada pela sociedade. Ele tem por sua vez um gerente, o intermediário, que é quem aparece. Essa figura contrata o apontador, responsável por levantar o perfil da vítima. Há, claro, o executor, aquele puxa o gatilho, que pode ser uma ou mais pessoas. E, na outra ponta, aparece o protetor, uma figura que tem papel fundamental. Ele não somente dá proteção aos executores, como também impede que os inquéritos avancem no sentido de desbaratar toda a rede. Com que outras atividades criminosas esse tipo de crime está relacionado? O crime de extermínio faz parte do crime organizado e tem uma vinculação estreita com o roubo de carros e de cargas, e o tráfico de armas e de drogas. Onde há roubo de cargas há grupo de extermínio que mata caminhoneiros, concorrentes e pessoas que ameaçam denunciar. Esses grupos têm uma atuação muito forte. Há casos em que o próprio criminoso ocupa o lugar do delegado quando ele não está na cidade. Outros chegam a exercer o cargo de secretário municipal. Há uma ação articulada em que o poder público é muitas vezes conivente e omisso, mas há casos em que ele é apoiador e participa do evento criminoso. “Há casos em que o próprio criminoso ocupa o lugar do delegado quando ele não está na cidade” Não há nenhuma dificuldade para recrutar os executores? Em alguns casos, os adolescentes são recrutados para se tornarem bons atiradores já a partir dos 14 anos de idade. No Ceará, o município de São João do Jaguaribe é conhecido como exportador de pistoleiros. Um professor que conseguiu falar com alguns desses garotos quis saber quantos tiros eles davam por dia. Responderam que, pra ser um bom atirador, é preciso dar, em média, 200 tiros por dia. Eles conseguiam essas armas e munições através de policiais. O perfil das vítimas se difere muito do perfil do executor? Quais as suas principais características? Há diversos tipos de vítimas. Em sua maioria, são jovens, negros, pobres e não têm mais do que o primeiro grau de escolaridade. Para convencer a sociedade a não contestar a ação dos grupos de extermínio, eles matam aquilo que chamam de “almas sebosas”, pessoas que têm alguma atividade criminosa. Por isso, de início, a sociedade agradece, financia e até aponta as vítimas em potencial. Muitas vezes, eles contratam jovens para cometerem alguns crimes e justificar a ação deles. Só que esses jovens não são eliminados porque estão a serviço do tráfico de drogas e de armas. Eles começam a vender armas e dizem para quem as venderam. Amparados por policiais, esses criminosos vão até lá e retomam a arma, porque o indivíduo não tem porte e ela não está cadastrada. Com isso, fazem a revenda. Com o tempo, passam a dar proteção a autoridades em eventos turísticos, como o São João e o Carnaval fora de época. Ao mesmo tempo, esses criminosos passam a eliminar trabalhadores rurais, mototaxistas, motoristas do transporte alternativo, pessoas que denunciam, lideranças sindicais e rurais e defensores dos direitos humanos. “(As vítimas) Em sua maioria, são jovens, negros, pobres Agem como se fosse um braço armado do Estado? Eles ocupam o papel do Estado, começam a oferecer cesta básica e festa para as pessoas. Mas, com o tempo, elas começam a ser atingidas, porque entes da própria família começam a ser eliminadas. Eles chegam e dizem: “Agora a gente fechou a boca de vocês com cesta básica. Ou vocês se calam ou vão ter o mesmo destino que os filhos de vocês tiveram”. Dizem que é um Estado paralelo, mas discordo. É um Estado transversal, porque é dentro do próprio Estado que eles estão penetrando e assumindo essa postura criminosa. “É um Estado transversal, porque é dentro do próprio Quais as sugestões apontadas pelo relatório da CPI? Estamos pedindo, em primeiro lugar, uma CPI do Congresso Nacional para investigar a ação desses grupos em todo o país. O que conseguimos identificar no Nordeste é uma marca do que ocorre em todos os demais estados. Defendemos também a criação de uma comissão da própria Câmara que possa acompanhar o cumprimento dos encaminhamentos que estamos fazendo ao Ministério Público, à Polícia Federal e aos governos estaduais e municipais. A CPI vai sugerir que se tome alguma providência em relação aos policiais? Estamos pedindo a independência das corregedorias de polícia. Hoje elas estão aí não para investigar, mas para absolver o policial envolvido. Defendemos a independência dos institutos de polícia científica, em relação às secretarias de Segurança Pública, para que possam ter liberdade para fazer o trabalho de investigação criminalística e dos laudos cadavéricos. Além disso, estamos solicitando a federalização dos crimes contra os direitos humanos (ponto previsto na reforma do Judiciário, em tramitação no Senado). Enfim, há uma série de recomendações para que tenhamos o combate efetivo ao crime organizado no país. A tipificação do crime de extermínio é uma delas? A tipificação do crime de extermínio no Código Penal e a criação de um banco de dados com credibilidade são fundamentais nesse processo. Muitas vezes, os estados fazem maquiagem dos crimes que acontecem. Eles transformam esse tipo de ocorrência em briga de gangue. Achamos fundamental uma ação articulada entre os governos federal, estaduais e municipais. “Muitas vezes, os estados fazem maquiagem O senhor recebeu ameaças quando relatou uma CPI sobre a atuação dos grupos de extermínio na Paraíba. Essas ameaças têm se repetido? Assim que o requerimento para instalação da CPI da Câmara foi aprovado, às 15h30 de uma quinta-feira, fui chamado ao gabinete para atender ao telefonema de um policial da Paraíba. Ele me disse o seguinte: “Hoje está marcada uma cilada para eliminá-lo no momento em que o senhor estiver se deslocando do aeroporto de João Pessoa para o Centro. Primeiro será o senhor, em seguida, o Frei Anastácio (presidente da CPI estadual)”. Entrei em contato com a Polícia Federal, que estava lá pra dar a proteção. A partir desse momento, continuo andando na companhia de policiais federais que nos dá segurança. Mas a gente se sente preso. Na realidade, perde-se toda a individualidade. Como padre, tenho dificuldade até para celebrar missa. Há sempre pelo menos um policial na igreja. A pessoa não pode se aproximar de mim porque já há toda uma preocupação. A alguns locais não posso ir. “Como padre, tenho dificuldade até para celebrar missa. O senhor sente medo por causa dessa situação? Temer, todos nós tememos. Sempre digo o seguinte: segurança a gente pode ter da polícia; proteção vem de Deus. Certa vez perguntei a um agricultor que lutava pela reforma agrária e havia sofrido um atentado à bala se ele não tinha medo de morrer. Ele, que era homem analfabeto, disse o seguinte: “Medo nós ‘tem’, mas não ‘usa’”. Medo eu tenho, mas se for usá-lo, não farei nada. Entrei nessa luta por convicção e não pelo poder. Tem um trecho no Evangélico que diz: “Aquele que bota a mão no arado e olha para trás não é digno”. Até quando Deus quiser, espero continuar fazendo o meu trabalho. |
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