Houve um tempo em que a presidência das duas Casas do Congresso Nacional (Câmara e Senado) era assegurada ao partido com maior bancada. Invocando essa tradição, o governo Lula elegeu em 2003 João Paulo Cunha (PT-SP) – hoje sujeito a perder o mandato, acusado de envolvimento com o valerioduto – e se espatifou em 2005, ao tentar emplacar o nome de Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP). Como se sabe, deu Severino Cavalcante (PP-PE), aquele que renunciou à cadeira de deputado dois dias atrás, na esteira do chamado mensalinho.
Agora, na disputa pela sucessão de Severino, o próprio governo abandonou o antigo discurso. Quer eleger Aldo Rebelo (PC do B-SP), ex-ministro da Articulação Política e integrante de uma bancada de dez parlamentares em uma Casa na qual há 513 deputados federais. A candidatura de Aldo foi lançada ontem à noite com o apoio dos líderes do PT e do PSB e da ala governista do PMDB, capitaneada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros (AL).
O fato tem dois significados importantes. O primeiro é que o governo desistiu de patrocinar o nome do presidente nacional do PMDB, Michel Temer (SP), que chegou a ser defendido por alguns políticos como um potencial candidato de consenso. Contestada por diversos petistas e sem o apoio do PSDB, que fechou acordo com o PFL em torno do primeiro-vice-presidente da Câmara, José Thomaz Nonô (PFL-AL), a candidatura de Temer perdeu força. É possível, inclusive, que ele decida desistir da disputa.
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Com o lançamento de Rebelo, o governo emite outro sinal relevante. Está disposto a partir para a briga, com a intenção de evitar a vitória de Nonô. Movido por tal propósito, chegou a encampar – por menos de 24 horas – a candidatura do seu líder na Câmara, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP). Na manhã de ontem, Chinaglia era vendido como o candidato oficial do PT. À noite, declarou apoio a Aldo Rebelo.
Para os oposicionistas, tudo não passou de manobra de despistamento. A candidatura Chinaglia jamais teria existido para valer. Seu único objetivo foi encerrar a discussão interna dentro do PT, pondo fim às pretensões de deputados como José Eduardo Cardozo (SP), Sigmaringa Seixas (DF) ou Paulo Delgado (MG). Resta saber o que pode sair do cenário de confronto buscado pelo governo.
Samba-do-crioulo-doido
A eleição do novo presidente da Câmara, marcada para a próxima quarta-feira, promete emoções fortes. Estima-se que Nonô, hoje em vantagem em relação aos demais pretendentes, tenha no momento cerca de 150 votos prováveis. O número, que pressupõe o apoio quase integral das bancadas do PFL e do PSDB e mais votos dispersos em outras legendas, seria suficiente para levá-lo ao segundo turno. Mas não para vencer a batalha, o que exige a maioria dos votos válidos (apurado pela soma dos votantes menos o total de votos nulos, ou seja, algo próximo de 250). Daí o seu esforço para colher novas adesões.
Tem boas chances de levar grande parte dos 45 votos do PDT, do PPS, do PV e do Prona. Os quatro partidos já resolveram que terão um candidato comum na eleição, mas ainda não formalizaram apoio a qualquer nome. Aliados de Nonô, contudo, mostravam-se ontem preocupados com o ritmo das adesões, que consideram lento.
O governo também corre sérios riscos ao abraçar a candidatura de Aldo Rebelo. Para que ela tenha sucesso, busca o apoio do PP, do PL e do PTB. Mas, nesses e em outros partidos, a quantidade de aspirantes ao cargo de presidente da Câmara embola ainda mais o samba-do-crioulo-doido em que se transformou a guerra pela cadeira ocupada durante sete meses pelo rei do baixo clero.
Dois desses aspirantes – Luiz Antônio Fleury (PTB-SP) e Jair Bolsonaro (PP-RJ) – já anunciaram que manterão a candidatura até o fim, embora não tenham chances de vitória. Mas esse grupo também inclui parlamentares cuja força representa uma incógnita. Ciro Nogueira (PP-PI), discípulo de Severino e potencial herdeiro de sua base eleitoral, é um deles.
Na condição de presidente em exercício da Câmara, Nonô tem tomado providências para pôr alguma ordem em meio ao caos. Uma das decisões que adotou, de comum acordo com as lideranças partidárias, é a proibição de propaganda visual nas dependências do Congresso. Cartazes, faixas e banners estão vetados.
Também ficou combinado que, na véspera da eleição (terça, 27), será realizado um debate entre todos os candidatos. Ele será transmitido ao vivo pela TV Câmara, a partir das 18h. A eleição será realizada a partir das 10h, por meio de votação secreta. Se nenhum candidato obtiver a maioria dos votos, como é provável, os dois mais votados disputarão o segundo turno, marcado para as 18h do mesmo dia.
As chances de cada um
Pelo menos três fatores tornam imponderável o desfecho da guerra sucessória na Câmara: 1) A crise política, que destrói reputações, enfraquece o poder dos líderes e estabelece um clima de salve-se-quem-puder; 2) Os arranjos em andamento com vistas às eleições de 2006 (que explicam, por exemplo, as alianças PFL/PSDB, PDT/PPS e PT/PSB/PC do B ou o empenho das diversas forças políticas em buscar o apoio do sempre imprevisível PMDB); 3) A relativa indiferença de grande parte dos parlamentares em relação à indignação da opinião pública contra práticas severinas, fato que pode abrir espaço para acordos inconfessáveis (promessas de benefícios individuais, tais como nomeações, liberação de verbas públicas, compromissos de financiamento eleitoral etc.).
Não se pode afirmar sequer que todas as candidaturas já estão postas. Há, ainda, vários candidatos que podem terminar abandonando a disputa (o prazo para registro de candidatura vai até terça-feira). De qualquer maneira, neste momento, a situação em que se encontra a disputa pode ser sintetizada mais ou menos assim:
José Thomaz Nonô (PFL-AL) – Sabendo que o governo mantém maioria na Câmara, apesar do lamaçal ora em investigação e da divisão na base governista, mandou vários recados ao Palácio do Planalto para mostrar que, eleito, não faria do cargo uma trincheira oposicionista. Por não acreditar nisso, o governo escalou Aldo para o embate. O feitiço pode virar contra o feiticeiro. Com a popularidade de Lula em declínio, Nonô – um parlamentar considerado sério mesmo pelos adversários – pode incorporar a figura do político capaz de devolver à Casa patamares mínimos de dignidade solapados por mensalinhos e mensalões.
Michel Temer (PMDB-SP) – Não é dado à cabala individual de votos dos parlamentares. Dificilmente será candidato se não tiver apoios partidários que lhe garantam boas possibilidades de vitória. Sua candidatura perdeu fôlego em razão, primeiro, do apoio dado pelos tucanos a Nonô e, em seguida, do lançamento do nome de Aldo.
Aldo Rebelo (PCdoB-SP) – Tido como atencioso e gentil, goza de bom conceito tanto entre as estrelas da Casa como entre os integrantes do baixo clero. Não é desprezível, também, o poder de fogo que o governo pode mobilizar em seu favor. O carimbo governista, indisfarçável para quem foi ministro de Lula até há pouco, pode levar muitos deputados – antenados com a “voz das ruas” – a buscarem outros nomes, até em função do desejo de sobrevivência pessoal.
Francisco Dornelles (PP-RJ) – Tem conversado intensamente com parlamentares para viabilizar a candidatura. No mínimo, ela projetaria seu nome para as eleições do ano que vem, além de cacifá-lo para compor com um dos candidatos que disputarão o segundo turno. O risco de uma votação vexatória, contudo, pode levá-lo a arquivar suas pretensões.
Ciro Nogueira (PP-PI) – De todos os candidatos “independentes”, é, provavelmente, o nome mais forte. Atual corregedor da Câmara e muito próximo do ex-presidente Severino, é uma das principais expressões do baixo clero.
João Caldas (PL-AL) – Outro aliado de Severino, lançou seu nome para negociar uma composição com os candidatos mais fortes. Uma das mais notórias expressões da bancada fisiológica, pelos métodos que utiliza, pode seguir qualquer caminho: desde retirar a candidatura em favor de Ciro até apoiar os candidatos do governo ou da oposição.
Luiz Antônio Fleury (PTB-SP) – Ligado ao deputado cassado Roberto Jefferson, sua missão é tirar o máximo possível de votos do candidato governista. No segundo turno, deve ficar com Nonô.
Sérgio Miranda (PDT-MG) – Um dos maiores especialistas em orçamento no Congresso, saiu do PC do B por discordar do apoio que seu ex-partido insiste em dar ao governo Lula. Sua candidatura é defendida por setores do PDT, para fazer um contraponto em relação aos interesses – tornados bastante suspeitos pela crise política – do governo Lula e dos partidos conservadores. No PPS, porém, a tendência majoritária parece ser o apoio a Nonô, já no primeiro turno.
Jair Bolsonaro (PP-RJ) – Na eleição da qual Severino saiu vitorioso, teve dois votos: o seu e o de um parlamentar que se equivocou na hora de votar. Deve repetir a performance.
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