Há uma versão sobre a origem da palavra lúdico que, contrapondo-se à positividade do significado, revela o lado mundano dos impérios antigos. Trata-se da história em torno da invasão de Sardes, capital da Lídia, bela e próspera cidade subjugada pelo rei persa Ciro em 546 a.C, na região das colônias gregas na Ásia Menor. Ciro determinou a construção de bordéis e tabernas e a realização de jogos públicos, decretando a obrigatoriedade de frequentação aos locais. A ideia era manter a harmonia e o progresso citadinos, sem necessidade de uso da força.
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A iniciativa vingou, sem que uma adaga sequer precisasse ter sido empunhada, e resultou na multiplicação das ideias de Ciro: os lídios – daí o termo ludus, que originou o “lúdico” contemporâneo – não só se divertiram fartamente, como passaram a inventar modalidades de entretenimento, passatempos e brincadeiras. Criatividade e invencionice a serviço dos planos do rei. Qualquer semelhança com a política contemporânea não é mera coincidência.
Eis que, séculos depois, a arte de desenvolver a criatividade e o conhecimento continua a explorar a natureza terrena do ser humano. E nada melhor que um jogo eletrônico instalado na maior rede de relacionamento do planeta, capaz de ligar todos os “reinos” com apenas alguns cliques, para lançar crítica bem-humorada contra a corrupção. Eis a intenção do game “Roba-Roba”, posto à disposição do usuário em 19 de abril passado pela PlayerUm, empresa do ramo de comunicação “focada em interatividade”.
A sistemática, além de hilariante, é simples – e muito parecida com o Pac-Man, jogo eletrônico da Atari que era uma verdadeira coqueluche nos anos 1980: você é um vereador que, ao comer as cédulas de dinheiro e pizzas que aparecem pelo caminho, é perseguido por agentes (Polícia Federal), juristas (Judiciário), jornalistas (imprensa) e o próprio cidadão (opinião pública). Caso fuja de todos, você será promovido, consecutivamente, a deputado estadual, federal, senador e… presidente do Senado! Aos incautos, o aviso: para jogar, é necessário ter perfil no Facebook.
Manual de instruções
PublicidadeAo fugir dos “adversários”, em analogia aos malefícios da corrupção, quanto mais o jogador devorar dinheiro e comida, menos hospitais, escolas e rodovias serão construídos. Ao iniciar a jornada, o usuário tem uma breve exposição de quatro elementos cruciais para a dinâmica do jogo, sem meias palavras: imprensa – “esforça-se para investigar os políticos, mas é facilmente distraída por qualquer besteira”; Justiça – “é cega e lenta. Anda aleatoriamente pelo mapa, prendendo as pessoas erradas”; povo – “não tem opinião própria. Segue a imprensa e segue o político. Dependendo de quem estiver mais perto”; e Polícia Federal – “é o mais esperto deles e geralmente tem motivações políticas. Trabalham sério, CUIDADO!”.
Ao avançar, o usuário é defrontado a uma infografia que, em tempos de cascatas de malfeito, reproduz o seguinte diálogo – não é mera coincidência com os grampos do caso Cachoeira: “Você foi eleito graças a algumas manobras eleitoreiras, como pagar churrascos e fazer showmícios nas favelas, onde você prometeu um monte de coisas, que não são nem da sua alçada”, diz um dos interlocutores – um empresário corruptor, por exemplo. “Mas… E daí? Você tá de olho é no salário, nos cargos e, principalmente, nos contratos!”, responde o interlocutor político.
Devidamente confrontado com a realidade, o usuário pode então começar o jogo. E cuidado! Caso seja “capturado” por um policial federal, por exemplo, você lerá o aviso: “Teje preso! (Infelizmente, só no game)”, lamenta o autor do jogo, reproduzindo o que pensa a opinião pública a respeito dos corruptos e corruptores.
Como é normal em jogos eletrônicos, há um elenco dos “maiores fichas sujas”, que registra as mais elevadas pontuações. Também merece menção a correspondência entre pontos conquistados e obras públicas/benfeitorias sociais – a mínima pontuação (100 pontos) leva à construção de uma praça; a máxima (20.000 pontos), a investimentos em pesquisas. Existe ainda a seção de “troféus”, com o “peso” de suas conquistas devidamente ranqueadas. Como exemplos, “jogar todas as fases: político profissional!”; “comer 10 imprensas: ditador!”; “comer 171 fantasmas: impune!”; “curtir: consciente”; e “compartilhar: orgulho cívico”.
Depois destas breves linhas, o Congresso em Foco congratula os idealizadores do game, ao passo em que celebra o bom humor a serviço da disseminação da ideia de que, enquanto a corrupção e a impunidade imperarem no país, estaremos condenados à injustiça e à desigualdade social. Enquanto as coisas não mudam, recorramos ao lúdico, sem ideias grandiloquentes de monarcas como o Ciro da Pérsia. Ou políticos como… bem, melhor irmos ao jogo.