Edson Sardinha
Cleunice Pereira é uma legítima trabalhadora brasileira. Empregada doméstica, 48 anos, moradora do Paranoá, cidade do Distrito Federal localizada a 28 quilômetros de Brasília, vive as mesmas dificuldades que todo cidadão de baixa renda deste país. Com o dinheiro ganhado honestamente, supera sacrifícios para manter a educação dos filhos de 17 e 18 anos. Talvez por essa identificação, Cleunice compartilha da mesma incredulidade que a maioria da população tem em relação aos políticos brasileiros. Ela é um exemplo concreto de que o tipo de político corrupto mas fazedor de obras infelizmente continua fazendo sucesso entre o eleitorado brasileiro.
Na visão dela, só há uma coisa que distingue um representante do povo do outro: é que uns roubam e não fazem; e outros roubam, mas fazem. Para ela, os políticos podem continuar roubando, mas desde que dividam com a população. Mas não é de dinheiro que a empregada doméstica fala: é de recursos para infraestrutura, saúde e educação.
Cleunice Pereira foi uma das nove pessoas que aceitaram o desafio da TV Congresso em Foco de fazer uma pergunta aos presidenciáveis. Não se limitou a perguntar, nem fugiu dos questionamentos feitos pela reportagem, como este: “Mas a senhora aceita que candidato roube? A senhora acha isso perdoável?”
“Isso aí eu não vou perdoar, porque todos eles roubam. Não posso fazer nada, né? Todos eles roubam. Então, rouba um pouquinho pra você, mas divide com a gente. Divide com a saúde pública, com tudo, amigo, contribui com a universidade, com esses meninos que estão aí começando a vida agora”.
“Nós tivemos candidatos bons aqui dentro de Brasília, bons, tipo Roriz [Joaquim Roriz, ex-governador]. Se ele pegou, é porque dividiu com os pobres. Esses candidatos que estão entrando aqui dentro eles não dividem com nós nem um pouquinho. Não quero que divide [sic] com nós assim dinheiro, dinheiro, não. Quero que divide com nós estrutura, creche, saúde, que nós não temos. Faça alguma coisa por nós. O tanto que eles roubam ali, mas divide. Façam alguma coisa.”
Distância enorme
A distância que separa o Paranoá do Plano Piloto é mais que geográfica. A renda média per capita na região administrativa é de 1,2 salário mínimo; um quinto da registrada em Brasília, que é de 6,8 mínimos. Para se ter uma ideia do fosso, na região mais nobre da capital federal, o Lago Sul, essa renda per capita chega a 10,8 salários mínimos, segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios, de 2004.
É nesse cenário de abismo social que Cleunice explicita sua total descrença em relação às instituições e aos políticos brasileiros. O lugar onde ela vive há mais de 30 anos aparecia com o segundo pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), no quesito renda, entre as 19 regiões administrativas que existiam no Distrito Federal na época, segundo a pesquisa mais recente e completa sobre as condições de vida no Distrito Federal. Com um índice de 0,612, o Paranoá só ficava à frente, na época, do Recanto das Emas. O IDH-renda no Plano Piloto, naquele ano, era de 0,948.
De lá pra cá, o Paranoá deixou de abrigar o Itapoã, a maior favela de Brasília, com 50 mil habitantes. Em 2005, durante o último governo Joaquim Roriz (PSC), destacado por Cleunice, o Itapoã virou uma cidade independente. A trabalhadora que defende o “rouba mas faz” é, acima de tudo, mais uma vítima da exclusão social.
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