Bajonas Teixeira de Brito Junior *
O caso da condenação da agente de trânsito que multou um juiz no Rio é trivial. Pode parecer assombroso mas, na verdade, é coisa corriqueira. Basta lembrar o processo contra Emir Sader, quando, em primeira instância, foi considerado culpado por um juiz meramente por ter acusado Jorge Bornhausen, então presidente do PFL, de racismo. Sader perdeu o direito de ensinar na UERJ e recebeu um ano de reclusão, convertido em prestação de serviços. A tempestade que se levantou na opinião pública, ofendida com esse deboche, foi condição importante de revisão da pena pela Justiça.
Num artigo sobre o assunto aqui no Congresso em Foco, em 2006, lembramos que um fato semelhante acabara de ocorrer com três funcionárias da Febem (hoje rebatizada demagogicamente de Fundação Casa) de Bauru, que foram afastadas de suas funções em razão de denunciarem tortura na instituição.
Evidentemente que as consequências dessas práticas repercutem fortemente sobre a conduta de uma sociedade e seus ideais. Se um juiz parado numa blitz de trânsito, em estado completamente irregular, sem habilitação e com o veículo sem placa, pudesse inverter a situação e, ao fim, víssemos punida a agente que o multou (culpada de debochar da autoridade pública!) em que mundo estaríamos vivendo? Num mundo que pisa sobre a inteligência social com a bota do privilégio. O juiz, que deveria ser a encarnação do equilíbrio e da moderação, se recusa a fazer o teste do bafômetro, incide em infração gravíssima,exibe um belo portfólio de multas, guia sem a habilitação, chega a perder o direito de dirigir por um ano, mas, para nosso pasmo, não é ele que é acusado de debochar da função pública.
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Esse juiz dá voz de prisão por desacato à agente de trânsito. A ex-mulher se pronuncia para dizer que a agente Luciana “tinha a clara intenção de deboche” e o “objetivo de expô-lo ao ridículo”. Mas, cá entre nós, precisava de alguém para expor esse juiz ao ridículo? Não foi ele sozinho quem expos a si mesmo e, o que é muito pior, a própria função pública que o Estado a ele delegou, ao ridículo? Quem vai indenizar o prejuízo causado por ele à função judicial que é bem comum do estado democrático de direito? E o enorme dano causado à imagem da agente pelo seu abuso de poder? Esse juiz não é santo, e muito menos Deus.
Ditados como “Faça o que eu mando, não faça o que eu faço” ou “Manda quem pode, obedece quem tem juízo” são a cara dessa situação grotesca. As consequências desse autoritarismo de oligarquia monocultora e escravista numa sociedade complexa são extremamente dramáticas. O fato é que a nossa rústica aristocracia do mato é, e sempre foi, o espelho das classes médias e suas ambições de status. E a loucura daquelas elites no trânsito vem de longe. Era um dos fatos que mais chocava os estrangeiros que por aqui passavam no século XIX. Em Ordem e Progresso, Gilberto Freyre mostra alguns depoimentos de testemunhasaterradas com a violência do trânsito de carruagens na capital do Império. Os ricos faziam da velocidade um privilégio de classe e juntavam a ele o direito de matar no trânsito impunemente.
PublicidadeA velocidade no Brasil é uma linguagem. Que se recorde a frase de Pinheiro Machado ao seu cocheiro quando uma multidão ameaçava linchá-lo no centro do Rio: “Nem tão devagar que pareça afronta, nem tão depressa que pareça medo!”. Pois é, a nobre majestade com que cocheiro em uniforme de gala conduziu o veículo bestificou a multidão, que tirou o chapéu e quase pediu bença ao senador. Mas, afora situações muito especiais como essa, as carruagens sempre andaram voando.
E a classe média entendeu o recado adotando o fascínio pela velocidade. É a sua forma de partilhar, ela também, os foros de impunidade dos de cima. O resultado disso é que o Brasil, quando ainda era um país bastante periférico, especialmente na alta tecnologia relacionada à velocidade, podia se dar ao luxo de ostentar títulos de campeão na Fórmula 1. O país teve três grandes campeões, Emerson Fittipaldi, Nelson Piquet e Airton Sena, que firmaram, durante um tempo considerável, a égide brasileira no automobilismo mundial. Não é pouca coisa.
Mas, ao lado dessa hegemonia, vem a outra face da moeda: a de campeão mundial de mortes no trânsito. Com média de 50 mil mortos por ano nas estradas, as estradas do país são cada vez mais letais para pedestres, ciclistas e motoqueiros. Temos nada mais nada menos que meio milhão de mortes a cada dez anos. Mas a situação é mais dramática se observa a curva crescente das estatísticas. Morreram nas estradas brasileiras 37.018 pessoas em 2002, e 60.752 em 2012. Um aumento de 65% em uma década. Onde isso vai parar?
A primeira razão, de tudo isso, nos parece, é a identificação da classe média com o arbítrio praticado pelas elites. Uma submissão mental aviltante à supremacia social. A sua ambição desmesurada por pik-ups, SUVs, e tudo que lembre luxo (Highlux) e exclusividade vem daí. Mas esse desejo tem a sua melhor imagem na cobiça voraz do privilégio à velocidade. Hoje esse privilégio se concentra nas motos de grande potência customizadas e nos carros importados. Basta um olhar de relance nas notícias de trânsito para ver que o número de acidentes com carros importados se destaca claramente. Apesar de poucos em circulação, eles formam um universo muito consistente quando o assunto é a violência no trânsito.
Lembremos, porque é emblemático, o acidente do filho de Eike Batista e o modo como se resolveu: o carro retirado da cena do acidente, a cena desfeita quando da chegada da perícia,uma indenização paga à família da vítima. E que mais? Nada, o caso ficou nisso mesmo. Qual foi a enzima que o jovem Thor consumiu até se fartar nesse episódio? Poder social através da ostentação de impunidade. Ou seja, privilégio. Para quem quiser um retrato mais concreto da impunidade:
“Entre 2010 e 2011, Thor cometeu 11 infrações de trânsito, sendo nove delas por excesso de velocidade. Segundo os advogados dele, no início de outubro de 2012, Thor havia conseguido o direito de dirigir depois que a defesa entrou com um mandado de segurança para dar efeito suspensivo à liminar.”
Quando a Justiça brasileira, em nome dos seus próprios privilégios, pune quem deve zelar pelo cumprimento das regras de trânsito (a agente), e livra quem abusa do poder (o juiz), ela se torna o principal fator de intensificação das estatísticas fatais no trânsito. Pisando fundo na impunidade, ela inibe e desestimula o trabalho dos fiscais, reforça o velho ethos social que faz do direito um privilégio de classe. Ela incentiva, além disso, a matança ao sinalizar para a classe média que ser socialmente poderoso é estar acima das leis. Todo o esforço social de décadas no combate à violência no trânsito, essa Justiça faz desmoronar com uma sentença absurda. É claro que tanto o juiz reincidente quanto a sentença desvairada levam água ao moinho da violência no trânsito.
Sobretudo, o desrespeito e o despautério diante da racionalidade do direito indicam um profundo desprezo pela inteligência social que forma o ambiente de sustentação das democracias. É certo que no Brasil a Justiça tem razões que a própria razão desconhece. Mas a condição de possibilidade de uma democracia efetiva é a discussão fundamentada, a possibilidade de que o melhor argumento prevaleça no debate público. Ou seja, que exista uma opinião pública consistente. A imposição do arbítrio que a Justiça brasileira não se cansa de reeditar, faz picadinho da opinião pública.
Aliás, vale lembrar outra aberração recente: um helicóptero, com proprietário conhecido, transporta 450 kg de cocaína que, curiosamente, não tem dono. É possível que meia tonelada de cocaína seja responsabilidade de dois ou três pés de chinelo, um piloto, um copiloto e um caseiro de sítio? Se isso for admissível, se a Justiça, o Ministério Público e o país aceitarem isso, então é de se temer que não muito longe, talvez em cinco ou dez anos, cheguemos à situação que vive o México hoje. A imposição da violência sobre a racionalidade social sempre foi paga com surtos incontroláveis de barbarismo, que o diga a história dos vários totalitarismos.
* Bajonas Teixeira de Brito Junior é doutor em Filosofia, duas vezes premiado pelo Ministério da Cultura por seus ensaios sobre o pensamento social e cultura no Brasil, professor universitário e escritor.
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