Mário Sérgio Sobrinho *
A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a importância e a gravidade do uso nocivo do álcool considerando ser esse modo de consumir aludida substância capaz de gerar efeitos negativos à saúde e ao bem estar, razão pela qual, ao adotar resolução sobre as “estratégias para reduzir o uso nocivo do álcool”, considerou como meta final para melhoria da saúde e do bem-estar das pessoas, comunidades e sociedades, a redução do uso nocivo do álcool e do fardo das doenças a ele atribuíveis.
No Brasil, o consumo de álcool é vedado por lei aos menores de 18 anos, não é recomendado à mulher grávida e, também, à pessoa cuja condição prévia de saúde física e/ou mental seja incompatível com sua ingestão, sem falar que mesmo fora dessas condições, usar álcool é arriscado. Ao tratar das estratégias para redução do uso nocivo do álcool, a OMS deseja proteger toda a humanidade, pelo elevado potencial de o álcool gerar riscos ou consequências negativas à saúde e ao convívio social, não apenas ao consumidor, mas eventualmente às pessoas que dele estejam próximas.
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A propósito, em relação ao consumo de álcool na gravidez, a OMS afirma ser “um teratogênico potente, com vários possíveis efeitos negativos para o feto, inclusive baixo peso ao nascer, deficiências cognitivas e transtornos do espectro alcoólico fetal.” Qual pessoa, por exemplo, se sentiria segura embarcando em avião ou ocupando veículo de transporte terrestre, cujo condutor é sabidamente alguém que abusa do álcool e fez uso dessa substância pouco antes de assumir o controle da aeronave ou a direção do veículo?
Incontestável que o prejuízo decorrente do uso do álcool pode ultrapassar situação de mal-estar individual leve, como dor de cabeça ou náusea, que pode ser experimentada por alguém que excedeu, uma ou outra vez na vida, o consumo dessa substância, cabendo focalizar a presente análise na questão do uso nocivo de álcool e do seu particular potencial de gerar efeitos individuais ou sociais graves, por vezes, irreversíveis.
O álcool é a primeira causa evitável de doenças. Ao tratar das doenças álcool relacionadas, a mais frequentemente lembrada é a cirrose hepática, provavelmente por ser apontado que ela cause 30% das mortes relativas ao abuso de álcool, conforme indicado pela revista Entreteses, publicação semestral da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), do mês de junho de 2016. Estima-se, aliás, com base no estudo denominado Panorama Álcool e Saúde, publicado pelo Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA), do ano de 2021, que alcance a cifra de 3,3 milhões de pessoas mortas por ano em todo o mundo em razão do álcool, substância que, também, é apontada como responsável por 5% do total da carga de doenças no mundo.
PublicidadeAdemais, outras moléstias graves estão fortemente relacionadas ao abuso de bebidas alcóolicas, atribuindo-se à reduzida dimensão da molécula dessa substância facilidade para penetração nos tecidos do corpo humano, afetando praticamente todos os órgãos e causando variados problemas, incluindo, gastrite, úlceras, “vários tipos de câncer (esôfago, intestino), problemas cognitivos, de memória, demência, hipertensão, alterações ósseas, etc.”, segundo outras indicações apresentadas pela revista Entreteses, da Unifesp.
Além da questão do elevado número de mortes atribuídas ao álcool, antes referida, é considerado, também, que essa substância gera diretamente o considerável número de 774 mil mortes por ano no mundo. Ainda, segundo estudos trazidos pela revista Entreteses, o uso de bebidas alcóolicas, invariavelmente, é associado a ocorrência de “acidentes automobilísticos, episódios de violência e agressão, atividade sexual não planejada e conflitos com a lei.”
O uso nocivo de álcool, em outro quadrante, gera problemas profissionais, muitos deles não percebidos imediatamente visto que a dependência ao álcool se instala lentamente, prejudicando a qualidade de vida, ocasionando perdas de oportunidades em diversos setores da convivência humana, inclusive, dificultando a continuidade dos estudos, gerando desemprego para alguns e restringindo o acesso ao mercado de trabalho para outros, sem falar que essa situação tem atingido cada vez mais faixas etárias de indivíduos jovens, isto é, das pessoas entre 20-49 anos, as quais segundo o Panorama Álcool e Saúde, CISA, do ano de 2019 “são as principais afetadas pelo uso nocivo do álcool, resultando na perda (temporária ou não) de pessoas economicamente ativas.”
O impacto que o álcool causa às relações de trabalho ultrapassa estigma ou falta de apreço que membros da sociedade podem dirigir àquele trabalhador que abusa de bebidas alcóolicas ou sob seus efeitos tenta desempenhar atividades laborais, mas encontra fundamento em constatações indicativas de que a ingestão de álcool, como ocorre com qualquer outra substância psicoativa, gera efeitos no sistema nervoso central, frequentemente causando desorganização mental, inegavelmente comprometedora da capacidade laboral.
Em acréscimo, conforme exposto pela revista Entreteses, já se sabe que “os efeitos do uso nocivo de álcool representam um relevante fardo na economia, uma vez que geram gastos públicos para o sistema de saúde, judiciário e de outras instituições.” Especificamente, “estima-se em 30% as taxas de absenteísmo e de acidentes de trabalho causadas por dependência de álcool na Costa Rica” enquanto na França, os acidentes de trabalho ocasionados pelo uso de álcool atingem números que variam de 10% a 20% do total dos infortúnios dessa natureza registrados no território francês.
É importante ressaltar que esses prejuízos não ocorrem apenas no exterior, pois segundo informado pelo Serviço Social da Indústria (SESI), ao tratar do impactos do uso de álcool e outras drogas no ambiente de trabalho, o Ministério da Previdência informou que de 2006 a 2017 o número de brasileiros afastados do emprego por causa do álcool e outras drogas alcançou o total de 447.900 trabalhadores, enquanto “estatísticas da OIT (Organização Internacional do Trabalho) colocam o Brasil entre os cinco primeiros países do mundo em número de acidentes no trabalho, o que significa cerca de 500 mil acidentes por ano, sendo que quatro mil deles resultam em mortes.”
Além de ser capaz de romper o vínculo profissional e causar outros prejuízos às atividades laborais em geral, tais como absenteísmo frequentemente associado ao álcool e, também, presenteísmo (menos referido e considerado como o comportamento do trabalhador que cumpre sua jornada laboral com baixa ou nenhuma produtividade, cuja razão pode decorrer do recente abuso de álcool ou resultar do consumo dessa substância durante o serviço), são também atribuídos ao uso nocivo do álcool gastos com emergências clínicas e psiquiátricas.
Ainda com olhar na saúde, outro dado que amplia os efeitos econômicos negativos do uso nocivo de bebidas alcóolicas, decorre da mensuração dos gastos com internações parcial e totalmente atribuíveis ao álcool. Conforme estudos do Panorama Álcool e Saúde, CISA, do ano 2019 ao considerar o custo de todas as internações realizadas no Brasil, foi constatado o aumento daquelas parcialmente atribuíveis ao álcool entre 2010 e 2018.
E os prejuízos seguem, tanto que a publicação Entreteses, aponta que a OMS estima a “perda de 7,3% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, em decorrência de problemas relacionados ao álcool, ou seja, cerca de R$ 372 bilhões em 2014. Incluem-se, entre outros prejuízos para a economia, os gastos do Sistema Único de Saúde (SUS) com o tratamento de doenças associadas ao uso de álcool e às perdas da capacidade de trabalho em decorrência de acidentes de trânsito provocados por motoristas bêbados, desemprego e afastamento do trabalho custeado pela Previdência Social.”
Aprofundando a questão dos efeitos do uso nocivo de álcool à Previdência Social, registros extraídos do boletim quadrimestral publicado pelo INSS, também repercutidos pela Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (ABEAD), apontaram que entre os anos de 2012 e 2016, 15% dos benefícios de auxílio-doença não relacionados a acidentes de trabalho foram concedidos em razão do uso de múltiplas substâncias psicoativas, entre elas o álcool, a cocaína e outras substâncias psicoativas, ocupando, respectivamente, a 5ª, a 7ª e a 8ª posição em uma tabela relativa à concessão desse benefício, organizada com dados produzidos pelo próprio serviço de seguridade social brasileiro.
Esses dados demonstram que, pelo menos parte dos efeitos econômicos e sociais do uso nocivo do álcool, são incontestáveis e conhecidos pelas autoridades brasileiras.
Nesse cenário, o Brasil, que há décadas se esforça para se manter entre os países em desenvolvimento, deveria buscar ações para enfrentar e reduzir prejuízos gerados pelo uso nocivo de bebidas alcóolicas, ultrapassando o maniqueísmo e a paixão que, normalmente, acompanham a discussão sobre sua necessária regulação, como proposto pelas “estratégias para reduzir o uso nocivo do álcool” da OMS, promovendo medidas que, na prática, proporcionariam o bem de todos, contribuiriam para construir uma sociedade livre, justa e solidária e, também, gerariam condições para garantir o desenvolvimento nacional, metas inseridas no artigo 3º da Constituição de 1988, entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
*Mário Sérgio Sobrinho – Procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo e Membro do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD)
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