Diana Leiko *
Mudanças bruscas tendem a assustar e é natural que vários de nós estejamos apreensivos com as notícias que chegam como prenúncio de um futuro que, para muitos, não existirá. Cada um tem se equilibrado na sua corda bamba para não sucumbir diante de uma realidade tão dolorosa. Eu, por exemplo, recorri à leitura e à Filosofia, que sempre foram meus alicerces, sobretudo, em momentos como este, propício a reflexões.
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Nesta primeira etapa da quarentena, lancei um olhar mais aprofundado para o Mito da Caverna de Platão e gostaria de compartilhar com vocês algumas questões. Mas antes, os motivos da minha escolha. O primeiro ponto é que o filósofo grego que viveu entre o século III e IV antes de Cristo é um pensador atual e estamos imersos na mesma realidade descrita por esse mito 2.400 anos atrás. É, no mínimo, curioso que ele traga questões muito apropriadas à situação particular da atual política brasileira.
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Em “A República”(o mito está no capítulo VII, também chamado de livro VII, parte em que ele discorre sobre o conhecimento), quando Platão discute as formas de governo, da decadência política, parece que ele leu os jornais de hoje.
PublicidadeO que diz o Mito da Caverna?
O diálogo travado entre Sócrates, personagem principal, e Glauco, seu interlocutor, trata da teoria platônica sobre o conhecimento da verdade e a necessidade de que o governante da cidade tenha acesso a esse conhecimento.
Segundo a alegoria, alguns prisioneiros são mantidos desde a infância em uma caverna, no seu nível mais profundo, onde estão acorrentados e virados de costas para uma pequena parede com uma fogueira acesa e, por detrás dela, está a saída. Por ali passam homens transportando objetos que se tranformam em sombras projetadas na parede em frente aos prisioneiros, que sequer têm noção de sua condição de confinamento. Estas sombras e o eco dos sons produzidos pelas pessoas de cima são todo o conhecimento que eles têm do mundo.
O caminho natural seria ali permanecerem por toda a vida. Porém existem coisas dentro de nós que ultrapassam a razão e isso é um mistério da condição humana. Lá pelas tantas, algo dentro de um dos prisioneiros começa a dizer que a vida não pode ser só aquilo. “Intuo que deve ter algo mais profundo para fazermos na vida”. É um “clique interno” que não tem explicação, mas pelo qual todos nós já passamos. Então certo dia ele se liberta.
Quando esse jovem arrebenta a corrente e olha para trás, percebe que tudo o que ele até então havia tomado como realidade eram sombras, uma mentira. Ao olhar para cima, ele vê uma luz lá no fundo, pequenina, muito mais forte que a fogueira. Pensa: “Se a luz dessa fogueira provocou tudo isso, aquela ali é que deve ter a verdade”. Não desiste até chegar lá. Cai mil vezes, levanta mil e uma e consegue sair com muito sacrifício e esforço. Ele se libertou por mérito próprio.
Acostumado com a escuridão, a luz do sol não o permite enxergar num primeiro momento. Mas à medida em que vai se acostumando com a luminosidade, ele começa a perceber a natureza e a infinidade do mundo exterior. Esse homem não tinha tudo para ser feliz? Porém ele não pode usufruir dessa felicidade sabendo que toda a humanidade sofre e ele não fez nada. Ele é um homem e a virtude fundamental do ser humano é a fraternidade. Ele retorna.
O percurso íngreme faz com que ele caia várias vezes até chegar novamente ao estágio inicial, todo arranhado e machucado. Ao contar aos seus parceiros de uma vida toda o que havia acontecido e o que ele encontrara fora da caverna, ninguém acredita. “Se você voltou de lá assim, eu é que não quero conhecer esse lugar. Você só pode estar louco!”.
Se uma pessoa não está nem desconfiada que o esquema da caverna é uma ilusão, nada que se fale fará com que ela acredite, porque falta esse “clique interno”, não tem como ser imposto por outra pessoa. Quem está curtindo o espetáculo é capaz de agredir e destruir quem pensa de forma diferente, como fizeram com muitos filósofos ao longo da História.
Na visão de Platão, esse homem que se libertou, quando busca a sabedoria para si, é um filósofo. Quando ele tem necessidade de trazer consigo a humanidade e deixar pegadas, ele se torna um político verdadeiro, que na expressão pura, é um homem que conquistou tal nível de consciência que, para ajudar a humanidade, ele tem que descer. E só faz isso por uma única razão: compaixão.
Se uma pessoa deseja um posto no governo é porque estava abaixo do que é exigido para merecer esse posto. Isso significaria ganho para ela. O político verdadeiro não tem esse desejo, tem “sacro-ofício”. Ele abre mão da sua posição e desce até a caverna para conduzir a humanidade, porque sabe que se ele não o fizer, a humanidade vai ficar perdida ou vai ser explorada por alguém. Quer um posto de governo? Deseje estar abaixo.
Tudo que você leu até aqui sobre o Mito da Caverna é um resumo do que explica brilhantemente a professora Lúcia Helena Galvão em suas aulas. A partir de agora, compartilho um pouco do efeito desse conhecimento sobre minhas reflexões e vivências.
Uma ostra que não foi ferida não produz pérolas
Vocês já devem ter ouvido essa frase, que traduz exatamente como me sinto. As pérolas são resultado da entrada de uma substância estranha ou indesejável no interior da ostra, como um parasita ou um grão de areia. Ou seja, as pérolas são produto da dor.
Fazendo um paralelismo com a minha realidade, essa substância que, de tão recorrente, não tem sido tão estranha assim, se chama cortisona, o hormônio do estresse. Eu ando sentindo muita raiva e dor – no coração e na alma -, como a ostra sendo invadida por um corpo estranho. Já havia estudado o Mito da Caverna na faculdade de jornalismo. Desde então, recorri a ele algumas vezes e, nesses dias de isolamento social, comecei a assistir a palestras sobre filosofia, o que me fez produzir algumas reflexões que são a minha produção de pérolas.
Muitas informações contidas nessa alegoria denunciam a alienação humana, presente naqueles que insistem em negar a gravidade do momento em que estamos atravessando. Até quando alguns escolherão o fundo da caverna? Será que é uma pré-disposição ao engano ou puro comodismo? Sim, manter-se na ignorância é muito mais confortável do que buscar o conhecimento, que implica em muito sacrifício.
Diversas vezes já ouvimos dizer que a voz do povo é a voz de Deus. Isso quer dizer que, se tudo mundo pensa de tal forma, eu devo estar errado, como o prisioneiro que se atreveu a se libertar das correntes e conhecer o mundo lá fora. Seus parceiros o acusaram de estar louco, porém, na Idade Média todo mundo acreditava que a Terra era plana e estavam todos errados, só não Galileu Galilei e Giordano Bruno, como lembra muito bem Lúcia Helena em sua aula.
É impressionante que ainda hoje existam os terraplanistas, que contestam o que a Ciência já comprovou há séculos. É estarrecedor que a voz do povo queira desafiar o que vários cientistas e especialistas no mundo inteiro recomendam quanto às medidas que se devem adotar para combater o novo coronavírus. Ainda que não acreditem, contra fatos não há argumentos. Pessoas estão morrendo nos quatro cantos do planeta e, se não fosse a imprensa informando, já estaríamos – todos nós – condenados à morte.
“Em diversas épocas, não foi a maioria quem fez História. Sócrates era um só, Platão era um só, Galileu era um só”, ressalta a professora. No mesmo caminho parece estar indo o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e tantos cientistas que neste momento trabalham, cada um, para encontrar uma vacina que nos tire desse algoz. Devo lembrar que os cortes de investimento na área de ciências, que começaram no segundo mandato da presidente Dilma Rousseff (PT), seguiram na gestão de Michel Temer (MDB) e se acentuaram com Jair Bolsonaro (sem partido), impediram a continuidade de pesquisas. Quem encontrar a cura para a doença responsável pela maior pandemia do século entrará para os anais da história. Será uma pessoa, não a manada.
Vivemos tempos sombrios e só o verdadeiro conhecimento será capaz de nos libertar das amarras da ignorância. Não se iluda. Esse caminho é solitário e sair da caverna vai exigir muito esforço próprio, porque o verdadeiro conhecimento está acima do senso comum. Não na mensagem falsa que você recebe no seu WhatsApp e passa para frente. Não está naquele “influenciador digital” que vai para o seu canal e expressa sua opinião construída em cima de sombras.
Mas sempre valerá a pena lutar pela sabedoria, pois a recompensa é muito valiosa. Com ela, você aprende a formular seu pensamento, a ter senso crítico e, a partir do momento em que isso acontece, você deixa de fazer parte da grande massa de manobra. Você se liberta! A crítica pela crítica todo mundo sabe fazer, já a crítica fundamentada em bons argumentos é rara. E você será capaz de fazê-la. Lembre-se: conhecimento é a luz que vai te guiar em todas as suas decisões, que precisam ser, no mínimo, racionais. Hoje vivemos o tempo da paixão cega. Você saberá distinguir o que é falso do que é verdadeiro e vai ser mais consciente nas próximas eleições.
“Mitos são atemporais porque falam do homem, não de um tempo passado. Por isso, qualquer um que o ler se encontra lá dentro e sabe exatamente o momento em que ele está vivendo dentro daquela narrativa. Enquanto o homem for homem e lutar contra as mesmas sombras, aquele mesmo mito funcionará”, finaliza a professora Lúcia Helena Galvão, sempre generosa ao compartilhar conosco seus conhecimentos.
Por fim, um conselho. Não podemos cair na armadilha das paixões. Raiva, revolta e tristeza são emoções recorrentes neste momento. Pare, reflita, busque informações em fontes credíveis. Produza a sua pérola verdadeira. O opinionismo raso não vai mudar em nada a realidade.
* Diana Leiko é jornalista.
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