Flávia Lefèvre*
O Senado Federal pode votar nesta sexta-feira (3), o PLS 1179/20, do senador Antonio Anastasia (PSDB/MG), que trata do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do coronavírus (covid-19). O artigo 25 do PLS adia por mais doze meses a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), prevista para agosto deste ano.
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Adiar a vigência da LGPD significará um caminho sem volta e uma arma nas mãos de governos autoritários e adeptos da vigilância. Mais: abrirá o caminho para a contratação de tecnologias de vigilância sem a devida dose de institucionalidade, como temos visto agora, entre governos e empresas em caráter de urgência questionável, sem licitação e sem transparência.
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Em certa medida, estaremos abdicando gravemente de importantes garantias constitucionais que estabelecem a liberdade e a segurança, pois esses são valores intrinsecamente relacionados com a proteção de dados pessoais, assim como a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, justamente num momento em que estamos ainda mais sujeitos a práticas abusivas, tanto por agentes privados quanto públicos, com a venda de aplicações de saúde e campanhas de desinformação.
Estamos atrasados, e muito, quanto à institucionalizar e regular as garantias e proteção à privacidade e dados pessoais, que estão na Constituição, no Código Civil, no Código do Consumidor e Marco Civil da Internet, aguardando pilares mais robustos, como nos apresenta a LGPD. De forma alguma, como querem nos fazer crer alguns setores empresariais, a pandemia que enfrentamos hoje pode servir de justificativa para adiarmos a entrada em vigor da lei, ainda que possamos admitir eventualmente a ponderação sobre a vigência paulatina de uma ou outra obrigação às quais estejam sujeitas as empresas e poder público.
Eugeny Morozov, no seu livro “BigTech – A ascensão dos dados e a morte da política”, nos mostra que as grandes empresas de tecnologia dominantes nos mercados de big data globais, e que também predominam na prestação de serviços para governos, se desenvolveram num cenário de pleno neoliberalismo, com baixa valorização do papel do Estado como garantidor de direitos sociais e força regulatória reduzida, fazendo um uso arbitrário de nossos dados pessoais, com efeitos desastrosos para as democracias de diversos países.
Em virtude desta realidade, no Brasil estamos sujeitos a um grau de vulnerabilidade enorme, como se tem revelado especialmente a partir do processo eleitoral de 2018, e com riscos de danos irreparáveis se avolumando diante da ausência de uma LGPD. Mesmo que ela entre em vigor em agosto próximo, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) – órgão com atribuições fiscalizatória e regulatória – infelizmente não estará estruturada de modo a fazer valer e dar plena efetividade aos direitos conquistados.
E, pior, por pelo menos dois anos a ANPD estará vinculada à Presidência da República, num governo com pouco apreço pelos direitos fundamentais, o que se revela, por exemplo, com a edição do Decreto 10.046 no ano passado, com diversos aspectos em descompasso inadmissível com a LGPD, principalmente no que diz respeito a dados sensíveis.
Ainda que essa dinâmica possa causar incertezas por conta de decisões judiciais conflitantes, é fundamental que a LGPD entre em vigor e que os Ministérios Públicos Estaduais e Federais, assim como a Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor e o Poder Judiciário, estejam atentos ao seu cumprimento, de modo que o cidadão possa, por si ou por intermédio de suas entidades representativas, diante da inexistência do órgão regulador, fazer valer seus direitos. Isso é melhor do que seguirmos sem a lei.
O falso dilema entre vigilantismo e saúde
Cogitar se adiar a entrada em vigor da lei no atual cenário de enfrentamento à pandemia beira ainda à violação ao princípio da precaução, que também incide na esfera administrativa. Ao contrário, temos de agir com vistas a evitar a produção de danos com abrangência difusa e exigir que os poderes públicos se pautem por outro princípio, o da proporcionalidade. Eventuais medidas de vigilância necessárias num cenário de emergência na saúde pública devem ser respaldadas por garantias regulatórias adequadas, o que reforça a necessidade de que a lei entre em vigor o quanto antes.
Abrir mão da vigência da LGPD neste momento é abrir mão das garantias que o Estado deve nos prover, tendo em vista os fundamentos e princípios da República, expressos na nossa Constituição. Como nos ensina Morozov, os cidadãos, diante de falsos dilemas como “vigilantismo ou saúde”, devem tomar consciência de que não se trata de escolhas como “Estado ou mercado”. Estaremos escolhendo entre o exercício da cidadania, dos nossos direitos políticos, e não política.
Sendo assim, não podemos ceder à falácia de que para garantirmos a saúde pública e viabilizar medidas sanitárias teremos de abrir mão de direitos de proteção de dados pessoais e privacidade. Pelo contrário, a LGPD já traz hipóteses de tratamento de dados que dialogam com a atual conjuntura, como situações em que se faz necessário tutelar a saúde, ou para a realização de pesquisas com anonimização de dados, entre outros. Tudo isso, entretanto, de acordo com normas estabelecidas em ambiente democrático.
Ou seja, se a situação do covid-19 impõe que sejam operadas exceções, justamente por isso é fundamental que elas ocorram sustentadas por uma rede regulatória, com transparência, de modo que nós, cidadãos, possamos exercer o controle social, verificando se estarão ou não sendo cumpridos os princípios da finalidade, da adequação, da não discriminação, entre outros, neste momento crítico.
O que não é justo socialmente é que os/as brasileiros/as, depois de mais de 10 anos de discussão para a construção do texto aprovado no Congresso Nacional, sejam colocados/as diante de um falso e cruel impasse: desistir de nossa cidadania para assegurar nossa saúde.
Em artigo publicado em 20 de março no Finantial Times, intitulado “O mundo depois do coronavírus”, Yuval Noah Harari diz: “Nesse momento de crise, enfrentamos duas escolhas particularmente importantes. A primeira, entre a vigilância totalitária e o empoderamento cidadão. A segunda, entre o isolamento nacionalista e a solidariedade global”.
É compreensível que, sem a devida reflexão, quando as pessoas se vêem obrigadas a escolher entre privacidade e saúde, que terminem por escolher a saúde. Mas os governos não podem nos colocar diante dessa escolha. Harari nos propõe que, no lugar da vigilância massiva e arbitrária, se desenvolvam mecanismos para a retomada da confiança e da transparência. Precisamos, por exemplo, ter certeza de que as informações governamentais a respeito do isolamento e das medidas de higiene de fato são necessárias e eficazes. E, na medida em que há confiança, a sociedade adere e a necessidade de adoção de medidas de vigilância fica reduzida.
Adiar a entrada em vigor da LGPD neste momento de pandemia e emergência na saúde pública significaria potencializarmos cruelmente a tragédia. A tempestade perfeita estaria dada se, em meio a um eventual adiamento, a promessa do governo federal de privatização do SERPRO e Dataprev, que concentram dados dos todos os cidadãos brasileiros, se confirmem. Que o Senado Federal entenda a importância da proteção de dados neste momento e exclua do texto a ser votado nesta sexta-feira a previsão de adiamento da vigência da LGPD.
* Flávia Lefèvre é advogada, integra o Conselho Diretor do Intervozes e é uma das representantes do 3o setor no Comitê Gestor da Internet no brasil (CGI.br).
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