Por Wagner Rago da Costa*
“Não é preciso combater nem derrubar esse tirano. Ele se destrói sozinho, se o país não consentir com sua servidão. Nem é preciso tirar-lhe algo, mas só não lhe dar nada. O país não precisa esforçar-se para fazer algo, mas só não lhe dar nada. O país não precisa esforçar-se para fazer algo em seu próprio benefício, basta que não faça nada contra si mesmo. São, por conseguinte, os próprios povos que se deixam, ou melhor, que se fazem maltratar, pois seriam livres se parassem de servir. É o próprio povo que se escraviza e se suicida quando, podendo escolher entre ser submisso ou ser livre, renuncia à liberdade e aceita o jugo; quando consente com seu sofrimento, ou melhor, o procura.”
(LA BOÉTIE, E. (1574) Discurso da servidão voluntária – São Paulo: Brasiliense, 1982)
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Não obstante a abertura política levada a efeito pela Constituição Federal de 1988, a democracia brasileira ainda não é exercida em sua plenitude. Apesar de vivenciarmos a “era do conhecimento”, a “era da informação” ou a “era do milênio”, ainda estamos, em pleno Século 21, sob o jugo da “ditadura da ignorância”, a qual priva milhões de indivíduos da liberdade intelectual. Ignorância em sua acepção pura, qual seja, a falta de conhecimento.
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Partindo-se dessa premissa, seria de se esperar que todo esse conhecimento, advindo da facilidade de acesso à informação que hoje experimentamos, tivesse um poder transformador, que nos trouxesse algo de mais valor. Todavia, o tiro parece ter saído pela culatra. Parcela da nossa sociedade preferiu trilhar o caminho da ignorância voluntariosa, imposta por uma “ditadura” igualmente voluntariosa.
PublicidadeAs redes sociais, antes apenas veículo de futilidades divertidas e ostentações turísticas e gastronômicas, hoje são o picadeiro do circo da ignorância voluntária, das fake news; são a tribuna dos paladinos medievais da intervenção militar, do fechamento do STF e do Congresso Nacional, da volta do “AI-5” e outros absurdos do gênero.
A disseminação de notícias falsas é prática milenar. Porém, outrora, isso acontecia sem que se pudesse verificar a sua veracidade. O agente propagador agia, na maioria das vezes, por culpa, sem intenção de espalhar inverdades. Simplesmente, nelas acreditava, quiçá ingenuamente. Hoje em dia, não mais. Basta uma simples consulta à rede mundial para se atestar a fiabilidade, ou não, da matéria veiculada.
Fake news não apenas desinforma e confunde o seu destinatário. Não somente desestabiliza instituições ou destrói reputações, mas, também, elege péssimos governantes e representantes. É indigna. A prova está aí, diante de nossos olhos, inclusive na Praça dos Três Poderes.
Aliás, esse raciocínio remete-nos ao Século 16 (1548), quando um jovem francês, seguindo a metodologia renascentista de Maquiavel, ousou questionar a monarquia absolutista ao escrever o “Discurso sobre a servidão voluntária”. Etiene de La Boétie, no auge de seus 18 anos e ainda sobre os bancos da Universidade de Orleans, onde estudou Direito, suscitou um grande mistério da política: a obediência aos governantes aos “mitos”.
De volta ao presente, percebe-se que os tiranos da modernidade são o desconhecimento e a mentira, irmãos siameses nesse mundo das fake news. Somente o conhecimento, o estudo, a pesquisa científica, enfim, a cultura, são o remédio contra esse grave mal social, quase antropofágico.
A crença em um “mito” não se baseia em evidências, na obviedade, mas na “profunda necessidade de acreditar” – como diria Carl Sagan –, tornando quase impossível um debate lúcido e construtivo com quem pensa de maneira diferente. A mitificação de governantes é a exteriorização do dogmatismo, do preconceito de toda espécie, do extremismo e da intolerância, elementos esses indispensáveis à caracterização da indigitada ignorância voluntária.
Um Estado Democrático de Direito não prescinde de súditos, posto que somos nós – o povo – os detentores e destinatários do próprio poder. “Todo o Poder emana do Povo”.
Quando o filósofo e escritor Umberto Eco, antes de morrer, cunhou a frase “a internet deu voz aos imbecis”, certamente não o fez imbuído do desejo único de enaltecer a ignorância. Ao contrário, ele certamente estava a combatê-la, mexendo no brio de cada um de nós como forma de estímulo moral à busca pelo conhecimento.
A ignorância consentida, por exemplo, não acredita no poder destruidor do vírus, mas acredita piamente no remédio que o elimina – desde que prescrito por seu ídolo, não importando se médico ele não seja; não acredita na pesquisa científica, na medicina, na educação, nos juristas, nos intelectuais, no conhecimento como um todo; mas acredita em charlatões, em gurus negacionistas e naqueles que sustentam ser a Terra plana. Esses são os maiores vetores dessa síndrome.
Portanto, tudo indica ser bem menos oneroso ao cérebro negar a ciência, acreditar em falsos profetas, no sobrenatural, no pseudointelectual que menospreza as mortes por covid-19 e superestima as mortes por engasgo, no político mentiroso, corrupto e/ou autoritário, a ter que, simplesmente, buscar o conhecimento – lembre-se, ao alcance de um dedo. Depois do novo coronavírus, a ignorância é o mais letal dos agentes infecciosos que a sociedade brasileira terá de enfrentar. E contra, o único antídoto: o estudo, a educação.
Enfim, o pensamento de La Boétie e o vírus da ignorância voluntária continuam a circular livres e impunemente. E que essa quarentena nos livre para sempre dessa doença e nos aproxime, cada vez mais, desse elixir chamado “conhecimento”. É libertador!
* Wagner Rago da Costa é advogado, pós-graduado em Direito Público, Controle Externo, Direito Administrativo e músico.