Em reunião no final de maio, a diretoria colegiada da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) aprovou uma nota técnica (íntegra) que afirma que o uso de leitos da rede privada para pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) durante a pandemia de covid-19 pode causar uma ruptura do equilíbrio sistêmico do setor.
O texto é uma alternativa à nota preliminar (íntegra) elaborada pelo diretor de Desenvolvimento Setorial, Rodrigo Rodrigues de Aguiar, que vinha sendo alvo de críticas por pesquisadores de saúde. O novo texto buscou uma abordagem mais concisa e linguagem mais acessível, segundo o diretor de Gestão, Bruno Martins Rodrigues, autor do voto que foi aprovado pelos demais diretores. Apesar de mudanças na redação, o cerne é o mesmo: fortes ressalvas à fila única de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Em uma eventual fila única unindo as redes pública e privada, pacientes seriam atendidos por ordem de chegada e receberiam o leito de UTI disponível, não importando sua procedência.
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Ao justificar o posicionamento, a agência que regula as operadoras de planos de saúde privados afirma que é preciso manter o “equilíbrio sistêmico” entre os diversos agentes que atuam na cadeia produtiva de atenção à saúde. Segundo o texto, “eventual quebra de contrato entre um desses integrantes pode reverberar sobre a ação dos demais, em efeito de contágio”.
Com o avanço do coronavírus em vários estados do país, gestores locais têm requisitado leitos privados a fim de impedir o colapso do sistema e evitar que seja necessário estabelecer critérios de seleção de pacientes. O Governo do Estado de São Paulo, por exemplo, está contratando 4.500 leitos da rede privada de saúde, sendo 1.500 leitos de UTI para atendimento exclusivo de pacientes com casos suspeitos ou confirmados da covid-19.
CNS recomendou requisição de leitos privados
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) havia recomendado ao Ministério da Saúde e às Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde que adotassem a requisição de leitos hospitalares de propriedade de particulares, a fim de que seu uso fosse regulado pelas autoridades públicas de saúde. Frente a essa recomendação, a agência reguladora foi provocada pela pasta, que queria saber o impacto da fila única de UTIs no sistema sanitário brasileiro.
PublicidadeSegundo o texto da ANS, a possibilidade de gestão unificada dos leitos públicos e privados, como recomendado pelo CNS, dependeria de uma regulação que equilibrasse oferta e demanda. No entanto, a agência considerou que seria necessária integração de um conjunto de informações que, no curto prazo, talvez não se viabilizasse. A agência questionou a própria eficácia da medida como forma de distribuir de modo mais eficiente os leitos de terapia intensiva disponíveis no país.
Além disso, a agência salienta que a saúde suplementar não é um setor homogêneo, havendo desde conglomerados com operações na bolsa até pequenas instituições confessionais. Também cita disparidades regionais da rede atendimento à saúde e conclui que não parece haver opções de enfrentamento uniformes à covid-19.
Outro ponto citado pela agência é a hipótese de um cenário de escassez geral de leitos, tanto públicos, quanto privados. Assim, considera que a gestão unificada desses leitos “apenas promoveria uma equalização da falta de acesso não só para a COVID-19, como também para outros agravos, sem alcançar o resultado de assegurar direitos a usuários do SUS e gerar o sentimento de restrição de acesso pela ótica do beneficiário”.
Preocupação com hospitais privados
O texto salienta, ainda, que a pandemia não exclui outras necessidades em saúde para além da covid-19 e, portanto, a rede hospitalar das operadoras também precisa estar voltada ao atendimento de outros agravos de saúde. “A gestão unificada dos leitos públicos e privados para o enfrentamento da COVID-19 seria fator de forte impacto sobre organização do acesso dos beneficiários à rede hospitalar para outras necessidades em saúde.”
A nota também expressa preocupação com o impacto das requisições sobre o capital de giro dos hospitais privados devido à interrupção ou redução do fluxo de receitas das operadoras. “Eventual cenário de gestão unificada de leitos públicos e privados impactaria, de imediato, em seu modelo de negócio, de modo a ser provável que, no curto prazo, já não sejam capazes de arcar com suas despesas correntes.”
O documento afirma que prejuízos à essa peça de engrenagem são capazes de produzir efeito sistêmico de repercussão negativa em toda a cadeia de produção em saúde.
“A suspensão total ou parcial das atividades e até mesmo a insolvência dos hospitais, dependendo da magnitude desses eventos, em que pese ser inviável de se esmar no momento, podem levar à desarticulação da rede assistencial privada não somente durante, mas após a pandemia, afetando a vida dos mais de 47 milhões de beneficiários de planos de assistência à saúde”, conclui o texto.
Críticas à nota preliminar
A nota anterior havia sido refutada por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que a consideraram parcial e tendenciosa. No documento assinado por grupos de pesquisa das duas universidades (íntegra), a primeira nota da agência reguladora foi classificada como “uma peça retórica, vazia de conteúdos sanitários e repleta de convicções sobre a manutenção de negócios privados, fomentando ainda mais a segregação social no Brasil em meio a umas das maiores crises sanitárias da história”.
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Em tom mais elevado, o primeiro parecer da ANS alertava para prejuízos a usuários dos planos de saúde e apontava para a possibilidade de colapso da rede privada. Segundo o documento, produzido em 21 de maio, a requisição de equipamentos ou estabelecimentos da rede privada hospitalar representa “risco sistêmico” a toda cadeia produtiva do setor privado de saúde porque os contratos dos planos de saúde poderiam ser interrompidos sem a certeza dos beneficiários de garantia do atendimento.
Em contraponto, médicos, advogados e economistas da USP e da UFRJ afirmaram que a excepcionalidade da pandemia de covid-19 exige medidas drásticas à altura de uma emergência de saúde pública. “Agir em prol de interesses particulares e empresariais, e dividir a população brasileira entre cidadãos que usam o SUS, de um lado, e beneficiários de planos de saúde, de outro, são atitudes que não encontram, neste momento de calamidade pública, respaldo técnico e científico, nem ético e humanitário”, escreveram.
O grupo ainda não se posicionou sobre a nova nota aprovada pela diretoria da ANS.
Para a médica da UFRJ Ligia Bahia, uma das pesquisadoras que compõe o grupo, a principal preocupação é que o documento da ANS é “uma resposta inadequada para a tragédia sanitária que nós estamos vivendo”. Na visão dela, a primeira nota se descolava da realidade e fazia pouca referência ao problema de saúde.
No segundo documento, adotado pelo colegiado da agência reguladora, o diretor Bruno Rodrigues pontuou que a ANS tem se alinhado às autoridades sanitárias e empreendido esforços no intuito de contribuir para respostas céleres e efetivas no combate à covid-19, ponderando que age dentro do espectro das competências legais que foram atribuídas à agência.
Omissão da ANS
De acordo com Ligia, a ANS já vinha se omitindo diante do problema apresentado pela pandemia. Precocemente, a agência liberou a realização de procedimentos assistenciais eletivos em meio às medidas de isolamento social. Além disso, negou-se a regulamentar a proteção de inadimplentes e a impedir o reajuste de mensalidades, mesmo diante das crises econômica e social que acompanham a crise sanitária. “Uma pandemia, uma tragédia sanitária é um problema muito grave. Não é para uma instituição pública fingir que nada acontece”, avaliou Ligia.
A médica também ponderou que a experiência internacional aponta que é possível organizar as interfaces para esta colaboração entre os sistemas de saúde público e privado. Os pesquisadores são a favor da fila única porque reconhecem que há uma desproporção da oferta e entendem que neste momento de pandemia isso poderá se transformar em um problema ao sistema de saúde.
Congresso discute o assunto
Um projeto de lei de autoria do senador Rogério Carvalho (PT-SE) dá respaldo jurídico para que o poder público faça requisição de leitos em hospitais privados. A matéria foi aprovada pelo Senado e ainda precisa ser analisada pela Câmara dos Deputados antes de seguir à sanção presidencial.
O texto visa regulamentar a questão para evitar uma judicialização diante do aumento dos casos de covid-19 e da falta de leitos em várias regiões do país.
De acordo com o projeto, o uso dos leitos deve ser decidido pelos gestores estaduais e comunicada previamente ao hospital. A definição do valor da indenização a ser concedida aos hospitais privados deverá levar em conta uma cotação prévia de preços do mercado.
O Ministério da Saúde foi questionado sobre a existência de um plano para a questão da fila única de leitos de UTI, mas não respondeu até o fechamento desta reportagem. O espaço permanece aberto para eventuais manifestações.
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