Nos últimos dias, a mídia tem dado grande destaque à operação Overclean, conduzida pela Polícia Federal da Bahia, que, segundo as investigações, estaria desarticulando uma organização criminosa envolvida em desvios vultosos de contratos públicos. No entanto, uma análise mais aprofundada dos fatos e da narrativa revela que nem tudo é conforme retratado.
Examinado o inquérito de mais de duas mil páginas, identificam-se inconsistências e questões que passaram despercebidas pela cobertura superficial da imprensa. A abordagem sensacionalista adotada remete ao período da Lava-Jato, com narrativas parciais e falta de questionamentos críticos.
A construção de um personagem
Um empresário de pouca notoriedade foi rotulado como o “Rei do Lixo”. Essa construção de personagem remete a figuras semelhantes em investigações anteriores. José Marcos Moura, proprietário de uma empresa que integra um consórcio vencedor de licitação para a coleta de resíduos em Salvador, teve sua imagem propositalmente construída para se encaixar nesse estereótipo. Atribuir-lhe esse título majestoso parece excessivo, especialmente diante da ausência de evidências substanciais. A divulgação de uma fotografia sua, em trajes de prisão, reforça o intuito de um julgamento público e antecipado, em detrimento da sagrada presunção de inocência.
Leia também
Ademais, a utilização de sua relação societária com a irmã de ACM Neto como indício de prática ilícita é igualmente questionável. Se houvesse algo a ocultar, não seria mais prudente manter tal vínculo em sigilo? ACM Neto, figura política conhecida, dificilmente poderia ser visto como ingênuo. Assim, essas conexões públicas devem ser interpretadas como indícios de transparência, e não como elementos de conluio.
Fotos públicas, narrativas questionáveis
A mídia também apresentou como “prova” uma foto publicada no Instagram do deputado Fernando Bezerra Filho, ao lado do presidente do União Brasil, Antônio Rueda, e do prefeito de Goiânia, Sandro Mabel. A imagem, amplamente divulgada, foi usada para levantar suspeitas sobre os envolvidos. No entanto, se houvesse algo a ser ocultado, qual seria a razão para tornar tal momento público?
O foco no União Brasil
Curiosamente, o partido União Brasil emergiu como o principal alvo das investigações, apesar de a operação envolver pessoas de pelo menos oito partidos políticos, de todos os espectros ideológicos, como já foi revelado.
O União Brasil, apesar de possuir um grupo heterogêneo de integrantes, tem adotado uma postura independente e, com isso, fortalecido sua posição no cenário político nacional. Tal situação pode estar gerando reações externas. Nesse sentido, é forçoso convir que a narrativa da investigação precisaria ponderar esse contexto político: um partido que, até recentemente, abrigava um dos fortes candidatos à presidência da Câmara e que agora conta com um virtual presidente do Senado. Um partido que se apresenta como liderança potencial para uma federação que pode vir a ser a maior do país.
De fato, tudo isso deve ser sopesado na análise dos casos, sem que isso mude o que é certo do que é certo e o que é errado do que é errado.
A criminalização da política
Impossível não notar que o caso Overclean tem cheiro, cor e aparência do perigoso fenômeno da criminalização da política, um processo no qual práticas legítimas, como o exercício de cargos públicos, são associadas automaticamente à corrupção e ao ilícito. Ao adotar uma abordagem punitiva e reducionista, que desconsidera as complexidades da atividade política, corre-se o risco de enfraquecer as instituições democráticas, criando um ambiente onde a atuação política é constantemente vista sob a ótica do crime.
Essa dinâmica, bem sabemos, não só prejudica a confiança da população nas instituições, mas também enfraquece a qualidade do debate público, ao transformar divergências políticas em questões de justiça penal. A criminalização da política é um reflexo de uma visão simplista, que ignora o princípio fundamental da presunção de inocência e ameaça a liberdade de ação dos indivíduos no campo político.
Questões não respondidas
Um episódio central da operação foi a apreensão de R$ 1,5 milhão em um jato particular no aeroporto de Brasília. A investigação alega que esse montante seria destinado ao pagamento de propinas. Contudo, se tal fosse realmente o caso, por que a polícia optou por apreender o dinheiro no avião, ao invés de monitorar sua entrega e identificar os destinatários? Essa decisão levanta duas hipóteses: ou se sabia que o dinheiro não seria utilizado para propinas, ou estava ciente de que os destinatários poderiam ser autoridades com prerrogativa de foro, o que desviaria a jurisdição. Ambas as hipóteses são suficientes para questionamentos.
Conclusão
Não se trata de deslegitimar investigações ou de defender a impunidade. Longe disso. Quem for culpado deve ser responsabilizado, mas tudo dentro do devido processo legal. Isso, no entanto, não impede o escrutínio dos métodos e das intenções subjacentes.
A mídia, nesse caso, não pode aderir a narrativas simplistas, sob pena de repetir o que já se fez na Lava Jato. Por tudo isso, o caso Overclean deve ser encarado como um convite à reflexão sobre a qualidade do jornalismo investigativo, a preservação das garantias democráticas e os riscos da criminalização da política.
Como observou Conan Doyle, na voz de Sherlock Holmes: “O mundo está cheio de coisas óbvias, que ninguém em circunstância alguma consegue observar”.
Deixe um comentário