Fabiano Contarato*
Durante reunião com investidores internacionais, no último dia 9 de julho, o vice-presidente Hamilton Mourão ouviu que a recuperação da confiança, no país, passa pela capacidade do governo de atender os seguintes pontos: reduzir, significativamente, o desmatamento da Amazônia; aplicar o Código Florestal; fazer os órgãos de fiscalização e de proteção ao meio ambiente funcionarem adequadamente e desenvolver ações de prevenção às queimadas no bioma. Mas, logo depois, no dia 14, durante a sua participação em sessão de debates no Senado Federal, convocada para discutir esses assuntos, percebi que as chances de o governo alcançar esses resultados tendem a zero.
>Polícia faz buscas na casa do ex-governador Agnelo Queiroz
Leia também
A sessão transcorreu em um clima de cordialidade. O vice-presidente foi coberto de elogios por comparecer para debater e pela apresentação que fez. No entanto, confesso que fiquei extremamente decepcionado. Elogiar uma autoridade pública por debater com parlamentares não deveria ser motivo de festa. Prestar contas ao Poder Legislativo é um dever constitucional e uma prática comum em qualquer estado democrático e civilizado. Também, não vi motivo para aplaudir a mensagem que ele nos trouxe sobre a Amazônia.
Ao final de quase uma hora de um discurso recheado de frases de efeito, tabelas e gráficos, nenhuma medida concreta foi apresentada visando reverter a escalada da devastação, que se intensificou muito a partir de 2019. A exposição foi um mosaico de obviedades e de mensagens genéricas.
O vice-presidente esmerou-se em defender a indefensável política ambiental do governo Bolsonaro. Apoiou a desastrosa gestão do ministro Ricardo Salles, o qual é alvo de crescente reprovação pública desde a sua posse.
PublicidadeMuito antes dos importadores de commodities agrícolas e investidores internacionais emitirem essa espécie de ultimato ao governo, os ex-ministros de Meio Ambiente, em manifesto publicado em 8 de maio de 2019, já alertavam para as consequências negativas do desmonte ambiental e do crescimento do desmatamento na Amazônia. Chamavam a atenção, inclusive, para o risco de boicotes externos. Foram ignorados e os resultados aí estão.
Desde então, os clamores só aumentam. Procuradores do Ministério Público, parlamentares, partidos políticos, entidades de classe e movimentos sociais vêm tentando reverter os retrocessos pela via judicial. Também, em manifestação técnica, ao vice-presidente, que é Presidente do Conselho da Nacional da Amazônia, servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) apresentam preocupações com o aumento do desmatamento e das queimadas na Amazônia; citam o desmonte da política e de estruturas de proteção ambiental e cobram providências, mas, até o momento, o governo segue tocando seu projeto devastador.
Recentemente, os ex-ministros da Fazenda, os ex-presidentes do Banco Central e os representantes de grandes grupos econômicos nacionais uniram-se aos movimentos de resistência, mas a resposta do governo segue sendo a mesma: a negação da realidade.
As declarações do general Mourão dão conta de que o governo considera-se uma pobre vítima de campanhas difamatórias internacionais. Ele dá a entender que todos os críticos de suas políticas integram, de alguma forma, essa grande conspiração internacional contra o agronegócio do país.
Como diz o ditado, a pior cegueira é recusar-se a ver o que está diante dos próprios olhos. Enquanto tenta esconder a realidade, o mundo acompanha, online, a destruição da Amazônia acelerando. O desmatamento subiu 34%, entre 2019 e 2018, atingindo mais de 10 mil km², segundo informa o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Essa foi a maior taxa desde 2008 e representa um retrocesso de 11 anos na luta contra a devastação do bioma.
As estimativas para 2020 são de aumentos ainda maiores. Dados do Sistema Deter do INPE, divulgados no último dia 10, apontam que a degradação na Amazônia Legal aumentou 64% de agosto de 2019 a junho de 2020.
Toda essa devastação tem eliminado bilhões de árvores e de animais e tem elevado as emissões de gases que agravam o problema das mudanças climáticas. Ao mesmo tempo, produz enorme sofrimento e insegurança sobre os povos indígenas. Eles estão vendo as suas comunidades sendo assoladas por invasores em busca de terras, ouro, minérios, madeiras e animais. Grande parte desses povos estão perdendo muitas vidas, especialmente, a de seus líderes anciãos, por causa do avanço descontrolado da covid-19.
Nem mesmo iniciativas de socorro, como a do Projeto de Lei 1142, que visa proteger os indígenas, durante a pandemia, e que foi aprovado por quase unanimidade na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, recebeu o apoio devido do Presidente da República. Foram vetados 16 pontos essenciais do projeto, tais como os que asseguram acesso à água potável e a leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs).
Com a chegada da estação seca, as queimadas recomeçaram na Amazônia, agravando ainda mais os terríveis efeitos da pandemia. Especialistas alertam para o risco de que a poluição do ar, pela fumaça, pode aumentar o número de mortes e piorar a sobrecarga do precário sistema de saúde da região.
Enquanto esse trágico filme se desenrola, no país, as principais autoridades federais esquivam-se de suas responsabilidades. No Ministério da Saúde, uma tropa militar liderada por um ministro interino, sem qualquer conhecimento de saúde pública, deixa a população entregue ao SARS-COV-2. No Ministério do Meio Ambiente, um ministro defensor da devastação favorece poluidores ambientais e dilapida o IBAMA e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), asfixiando as suas capacidades de ação.
Por sua vez, o vice-presidente lidera uma operação de militares na Amazônia que isolou o Ibama e não produziu qualquer resultado positivo até aqui. Além disso, dedica-se a fazer marketing para tentar aplacar as críticas ao governo e, assim, favorecer a continuidade de suas velhas políticas para a Amazônia e os desmontes ambientais.
Costumo dizer que contra fatos não existem argumentos. Desmatamento e degradação ambiental não são considerados problemas para esse governo. São, na verdade, indicadores de sucesso. São os resultados naturais do ultrapassado modelo de desenvolvimento que eles defendem.
Esse modelo, aliás, é rigorosamente o mesmo praticado pela ditadura militar. Não é de se estranhar que a coordenação das políticas para a Amazônia saiu da esfera civil.
Temos, agora, a volta do velho receituário militar de progresso do século 20: distribuição de terras para ocupantes e grileiros, projetos de infraestrutura sem salvaguardas socioambientais, apoio para a expansão de uma agropecuária rudimentar e ineficiente, liberação do saque de madeiras nobres e de minérios de valor comercial e a violação dos direitos dos povos indígenas e das populações locais. Estamos diante de um retrocesso de mais de três décadas.
Nessa lógica, é um grande negócio trocar a rica floresta por plantios de soja, de cana-de-açúcar e pela criação de bois; substituir as lindas paisagens e os importantes processos ecológicos por áreas degradadas e contaminadas por mercúrio e outros metais pesados e empurrar comunidades tradicionais que vivem na floresta para miseráveis favelas nas periferias das cidades.
É por tudo isso que o governo não tem interesse e nem sequer estratégia para acabar com o desmatamento da Amazônia, proteger as comunidades indígenas e extrativistas, menos ainda para promover uma economia florestal sustentável. Para eles, o desmatamento é a marca do seu sucesso. O extermínio das culturas indígenas, sua missão “civilizatória”.
Notemos que o trio Bolsonaro-Salles-Mourão é sócio desse mesmo empreendimento. Todos estão mobilizados para “deixar passar a boiada”. O primeiro dá o comando, o outro abre a porteira e o último tenta convencer a todos de que os bois não existem.
Se não houver forte reação dos Poderes da República e das sociedades brasileira e global é quase certo que eles acabarão levando o país para o brejo, com boi e tudo mais.
*é senador pela Rede-ES, palestrante e ativista humanitário. Foi professor de Direito Penal, Delegado de Polícia Civil; Diretor Geral do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-ES) e Corregedor-Geral do Estado na Secretaria de Estado de Controle e Transparência (Secont/ES)
>Para Ricardo Young, mercado obriga governo a rever política ambiental