Denise Paiero *
A multidão que tomou as ruas do Centro de São Paulo nos últimos dias, e que está começando a se refletir em outras grandes cidades do país, não está simplesmente reclamando do preço da passagem de ônibus. Vejo aí a sinalização de algo muito maior. De fato, o estopim foi o aumento de preço, mas não foram os 20 centavos. Foi a percepção de que não se poderia mais calar e engolir a cobrança ainda maior por um serviço básico que não funciona. Como tantos outros que não funcionam em nossa cidade. E isso foi só o começo.
Não é sem motivo que o que estamos vendo tenha partido de grupos indignados com o aumento do preço da passagem de ônibus. Afinal, o transporte coletivo e o trânsito da cidade estão entre os temas que mais massacram o paulistano em seu cotidiano. E isso vale para quem tem carro e para quem anda de transporte coletivo. São Paulo tem um dos piores trânsitos do mundo, está entre o quarto e o sexto lugar, dependendo da metodologia da pesquisa. E o paulistano perde em média duas horas por dia para ir e voltar do trabalho. Sabemos que esse número é muito maior para quem vive na periferia. Mas, como já afirmamos, esse foi apenas o começo.
O que estamos ouvindo nas ruas são gritos de uma população penalizada pelos excessos (de gente, de barulho, de trânsito, de poluição, de custos, de cobranças) e pelas faltas provocadas por esses excessos (falta de tempo, de contato com os filhos, de amigos, de saúde, de verde) que fazem parte da vida de qualquer paulistano.
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Um dos teóricos que servem como base para minhas pesquisas acadêmicas sobre protestos é o comunicólogo alemão Dietmar Kamper. Nos anos 1990, ele gostava de vir a São Paulo e observar as pessoas na região central, pois dizia que esta cidade parecia um grande laboratório de como as pessoas conseguem se re-signar (assim, separado) em/ com uma cidade que oprime e que exige transformações – para pior – constantes na vida e na relação com o mundo. Kamper dizia que éramos especialistas nisso! Na resignificação resignada do cotidiano. Segundo ele, paulistanos sobrevivem dentro de uma reconstrução permanente de si mesmos, passando por cima de seus próprios limites – físicos e psicológicos – à medida que a cidade se transforma. Parece que o mundo nos vê assim. A cobertura internacional sobre os protestos no Brasil tem mostrado espanto diante das reações inesperadas de um povo considerado “pacífico”.
O etólogo e prêmio Nobel de Medicina Konrad Lorenz afirmava, nos anos 1970, que o comportamento humano tende ao desequilíbrio e que, culturalmente, o homem e os grupos sociais agem como um pêndulo que se desloca para um extremo, até que a situação fica insuportável e joga o pêndulo para outro lado.
PublicidadeTeríamos chegado ao extremo da re-signação ordeira da cidade que nos cerca de caos?
Nos protestos que temos acompanhado, percebemos algumas características importantes: a organização já não organiza, não consegue mais conter a multidão que ajudou a mobilizar. Porque o problema não são mais os 20 centavos. E isso coloca em pânico qualquer organizador de ato de protesto: perder o controle da multidão é o que de pior pode acontecer para eles. Mas isso já aconteceu. A multidão criou vida própria, como mostram os espantados organizadores quando entrevistados sobre a “baderna” provocada por alguns mais exaltados. Mesmo que a organização do evento concorde em não subir a Rua da Consolação rumo à Av. Paulista, parte da massa não se resignará. E subirá pela rua Bela Cintra, pela Augusta, pela Frei Caneca, e por onde houver caminho aberto, como vimos na manifestação da última quinta-feira. E gritará. Já sem uma causa específica, caótica. A falta de causa pontual, diluída no sentimento de que as coisas têm de mudar, dificulta a compreensão do que está acontecendo e até uma possível resposta às demandas não identificadas.
Protestos são eventos de comunicação. Quem protesta quer dar visibilidade a uma insatisfação que não poderia ser mostrada de outra forma, senão com a ruptura da ordem, e quer trazer mais gente para sua causa. Por enquanto, como mostram os números crescentes e a ampla repercussão das manifestações na mídia tradicional e nas redes sociais, está dando certo…
Na manhã de sexta-feira, ao passar pelo centro de São Paulo, li várias pichações em tinta vermelha que bradavam: “Milhares acordando milhões”. Isso soa como um slogan do que estamos vendo e, quem sabe, como uma profecia do que pode estar por vir.
As bombas de gás lacrimogênio e os tiros de borracha vão colocar mais combustível num grupo já inflamado. Minha avó costumava dizer que “se jogarmos uma rã numa panela de água morna, ela morrerá aos poucos, sem reação, sem perceber, acomodada à temperatura da água”. Resignada, poderia ter dito Kamper. “Mas se jogarmos a mesma rã numa panela com água fervendo, ela pulará”. Talvez a água tenha fervido…
* É jornalista e professora de Jornalismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie, doutora e mestre em Comunicação e Semiótica. É autora da tese de doutorado “Mídia e terror: a construção da imagem do terrorismo pelo jornalismo” e do livro-reportagem Foices & sabres: A história de uma ocupação dos sem-terra.
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