No fim de 2015, a jornalista Cristina Serra fez seis reportagens especiais para o Fantástico, da TV Globo, sobre o rompimento da barragem do Fundão, no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG). Depois de passar o Natal daquele ano com vítimas da maior tragédia ambiental do país, Cristina resolveu aprofundar a investigação sobre o caso. A repórter deixou a câmara e o microfone para trás, meteu os pés na lama, mergulhou entre documentos, confrontou versões e resgatou histórias dos 19 mortos e de dezenas de famílias atingidas. Escreveu um livro, publicado em novembro.
O tom de denúncia e alerta da obra parece ter profetizado o desastre causado pelo rompimento de três barragens da Vale em Brumadinho (MG), na região metropolitana de Belo Horizonte, nessa sexta-feira (25). Até o início da madrugada, o governo de Minas havia confirmado sete mortos. Pelo menos 100 pessoas haviam sido resgatadas com vida, e outras 150 eram consideradas desaparecidas.
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Embora ressalte que não dispõe de elementos para comparar um caso com o outro, Cristina identifica pontos em comum entre as duas tragédias anunciadas. “A mesma fiscalização que não funcionou para Mariana não funcionou para Brumadinho. O cenário institucional é o mesmo. Não aprendemos nada com Mariana”, diz a ex-repórter da Globo ao Congresso em Foco. A falta de fiscalização e o atropelamento para a concessão de licenciamento ambiental foram dois fatores decisivos para o rompimento da barragem do Fundão, segundo a autora de Tragédia de Mariana – o maior desastre ambiental do Brasil.
Falta de fiscais
Cristina Serra lembra que o Tribunal de Contas da União (TCU) já havia apontado, três anos antes do desastre, o grau de sucateamento do principal órgão fiscalizador da área de mineração, o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), do Ministério de Minas e Energia.
Na época da tragédia em Mariana, apenas cinco dos 985 servidores do DNPM em todo o Brasil tinham a formação necessária para fiscalizar barragens de rejeito. Na mesma ocasião, o órgão tinha 663 barragens de mineração cadastradas, 450 delas só em Minas. Uma conta que não havia como fechar. O cenário não mudou de 2015 para cá, observa a jornalista.
Publicidade“Cada caso é um caso, mas o cenário institucional é exatamente o mesmo. A estrutura do poder público na fiscalização é ineficiente. É feita para ser ineficiente e, ao mesmo tempo, dar à sociedade a aparência de que funciona, a ilusão de que ela está protegida, mas não está. É o mecanismo perverso de fazer de conta que a legislação funciona. A política nacional de segurança de barragem, de 2010, é muito boa. Mas precisa ter estrutura de fiscalização. Hoje é impossível fiscalizar todas as barragens”, critica.
De acordo com ela, o DNPM e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente só descobriram que a Vale depositava lama na barragem de Fundão em 27 de novembro de 2015, em decorrência de uma fiscalização de campo após o desastre. Os dois órgãos também falharam em detectar o risco representado pelo recuo do eixo da barragem, feito em 2012. Treze dias após o desastre de Mariana o então diretor-geral do departamento, Celso Luís Garcia, que estava há cinco meses no cargo, apresentou licença médica e nunca mais voltou ao posto.
Rompimento de barragem é evitável e pode ser mais grave, diz Bolsonaro
Contra-argumento
Os casos de Brumadinho e Mariana, segundo Cristina, contrariam o discurso do presidente Jair Bolsonaro de que é preciso flexibilizar o processo de licenciamento ambiental, apontado por ele como um entrave ao desenvolvimento da economia do país. “Quando se fala de mudança de licenciamento, falam em apressar o licenciamento, que o Ministério Público atrapalha, que as regras são burocráticas. Espero que esse desastre sirva para que essa pauta seja analisada com menos pressa, que se levem em conta as questões de segurança.”, defende.
A jornalista conta que a concessão das licenças para a barragem do Fundão, por exemplo, se deu em prazo bastante curto e ignorou uma série de exigências legais. “O processo de licença comporta três licenças, uma obtida após o cumprimento das fases anteriores. No intervalo entre duas dessas três licenças foi de dois meses. Foi absolutamente veloz”, exemplifica.
Segunda chance
Para ela, a discussão deve ser invertida.
“Com Brumadinho, estamos tendo uma segunda chance de aprender. Essas duas oportunidades custaram muitas vidas. Foram 19 apenas em Fundão. Ainda não sabemos quantas vidas serão cobradas em Brumadinho. Não precisamos de mais mortes para aprender alguma coisa. Basta de morte. As de Mariana já deveriam ter sido suficientes”, lamenta Cristina.
A primeira experiência dolorosa não serviu de lição para os políticos. A Assembleia Legislativa de Minas mudou a lei de licenciamento logo após o desastre em Mariana. Ao invés de torná-la mais rigorosa, flexibilizou a legislação e restringiu a participação do Ministério Público. “Uma explicação para isso pode estar no fato de que as empresas de mineração eram grandes doadoras de recursos para as campanhas eleitorais, quando ainda era permitido o financiamento de empresas privadas”, afirma a jornalista.
Na avaliação de Cristina Serra, é preciso combater os abusos e não enfraquecer as exigências para o licenciamento ambiental. “A lei não é ruim. Ela não está sendo cumprida. O caso de Fundão mostra isso com clareza. Pode haver abuso aqui e ali, mas isso tem de ser combatido como exceção”, pondera. Do contrário, segundo ela, o país continuará a colecionar tragédias ambientais sem responsabilizar ninguém.
Sem punição
Desde 5 de novembro de 2015, a pior tragédia socioambiental do país acumula vítimas, problemas ambientais insanáveis, polêmicas e processos na Justiça, sem resultar em qualquer punição até agora. O rompimento da barragem do Fundão da mineradora Samarco, controlada pela brasileira Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton, despejou 34 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro, atingiu 38 municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo, transformou em lama as águas do Rio Doce, produziu 14 toneladas de peixes mortos e matou 19 pessoas.
Por enquanto ninguém foi responsabilizado pelo desastre em Mariana.
“Até agora não aconteceu nada. O processo criminal foi aceito em 2016, são 21 réus, mais de 400 testemunhas arroladas. Elas começaram a ser ouvidas, mas não há qualquer previsão de quando o processo vai ser julgado. É um processo gigantesco e complexo. Enquanto isso, a lama continua no fundo do rio. A grande maioria das vítimas não foi indenizada. O desastre de Mariana ainda se desdobra, e agora vem o desastre de Brumadinho”, diz a jornalista.
Natural de Belém, Cristina Serra é formada em Jornalismo pela Universidade Federal Fluminense. Trabalhou nas redações dos jornais Resistência, Tribuna da Imprensa, Leia Livros, Jornal do Brasil, da revista Veja e da Rede Globo. Na emissora, foi repórter de política em Brasília, especial do Fantástico, correspondente em Nova York e comentarista do quadro “Meninas do Jô”, no Programa do Jô. No começo de 2018, ajudou a fundar o canal digital My News, que, em setembro, promoveu uma série de entrevistas com os presidenciáveis em parceria com o Congresso em Foco.
Impunidade e acordos lenientes, o desfecho de três tragédias
Trabalhei como fiscal municipal por 19 anos nas áreas de obras, posturas, terraplenagem, depósitos de entulho, parcelamentos irregulares do solo. A grande verdade é que em todas as administrações pelas quais passei, sempre e isto é prática pétrea, privilegiaram os fiscais subservientes, em detrimento dos fiscais eficientes. É muito mais fácil os fiscais que se prestam a fazer o serviço “sujo” serem bem vistos internamente como também pelo público externo do que o fiscal rigoroso no cumprimento das leis. Este não tem a menor chance de ascensão à cargos comissionados ou ao simples reconhecimento. A fiscalização passa a ser apenas um desencargo de consciência além de serem usados como massa de manobras dos interesses políticos do executivo e, inclusive, de alguns vereadores garimpando votos. Sem contar também a infra estrutura precária disponibilizada para um serviço de fiscalização padrão. Acredito que seja assim , com raras exceções, no resto do país.
É triste constatar uma coisa dessas, mas somos assim mesmo: descompromissados, inconseqüentes, desonestos. É claro que há exceções, mas em geral somos desse jeito mesmo. Qual a razão para sermos assim? Não sei dizer. Talvez nossa natureza “boazinha” demais da conta faça com que deixemos de lado os procedimentos convencionados, em troca de uma vantagenzinha qualquer, ou até de um simples sorriso de simpatia. Se recebermos “algum por fora”, então, podemos fazer vistas grossas a regras de segurança fundamentais.
Não sei dizer ao certo porque isso acontece mas suspeito fortemente que duas coisas contribuem para isso: a educação inadequada, que anestesia nosso espírito público, e a impunidade. A impunidade, então, é um enorme incentivo às práticas delituosas.
É por causa disso que sou radical, inclusive comigo mesmo. Deteeesto o “jeitinho brasileiro”. Para mim, é “dura lex sed lex” e acabou-se. Por fim, para finalizar, acho que, desde o final de 2014, entramos num círculo virtuoso. Estou botando uma fé danada.