Seguindo à risca a cartilha do General Heleno de promover a “guerra de narrativas”, ao invés da guerra aos ilícitos e à corrupção ambiental reinante no país, Jair Bolsonaro faz na ONU uma série de afirmações “fakes” (ou meio-verdadeiras) a respeito da política e da situação socioambiental no Brasil. Se não vejamos:
1) O governo está aplicando a melhor legislação ambiental do planeta
Meia Verdade – A legislação pode até ser considerada uma das melhores (embora haja controvérsia) mas, este governo não vem necessariamente cumprindo-a a risca. Pelo menos o discurso do presidente aqui no Brasil não é esse. Por exemplo, a legislação brasileira propõe o perdimento de bens no caso de flagrantes ambientais em áreas remotas, onde não haja condição de remoção dos mesmos (tratores e caminhões por exemplo) (Ver aqui). Ficou famoso no Brasil vídeo do próprio presidente Bolsonaro dizendo que essa não é a orientação deste governo (Aqui). Além disso, o mesmo governo propôs a MP 910 (MP da Grilagem) que buscou premiar, com título de terra, quem desmatou ilegalmente, inclusive até dezembro de 2018, atropelando o próprio código florestal (Aqui)
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2) Somos vítimas de uma das maiores campanhas de desinformação ambiental
Falso – os dados de queimadas e aumento significativo de desmatamento que estão correndo o mundo correspondem aos dados oficiais, de órgãos de alta credibilidade nacional e internacional, do próprio governo (INPE), dados abertos e disponíveis a críticas e análises independentes desde meados da década de 1990. Portanto, não se trata de uma campanha de ONGs. Mas de fatos divulgados pelo próprio governo em face do dever de transparência. O governo é que está fazendo um grande esforço para tentar calar o INPE, órgão oficial responsável pela gestão dos principais programas de monitoramento de desmatamento e queimada no Brasil (Aqui)
3) Constrangimentos ambientais correspondem aos interesses internacionais escusos sobre as riquezas Amazônicas.
Falso – Como bem sustentou a ex-ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, em sua fala na audiência pública promovida pelo STF sobre a ADPF 708, desde 1972 a Conferência de Estocolmo em seu principio 23 (aqui) afirma que cada nação deve estabelecer seus próprios parâmetros. Portanto, do ponto de vista jurídico internacional a soberania de cada país está gravada desde o primeiro instrumento jurídico multilateral.
A Convenção de Diversidade Biológica (1992) também já estabeleceu a soberania dos países sobre seus recursos genéticos em seu artigo 3o (aqui). Assim como o artigo 2º do Decreto do Presidente da República que promulgou o Acordo de Paris (Decreto Federal 9.073 de 2017) afirma: são sujeitos à aprovação do Congresso Nacional atos que possam resultar em revisão do Acordo e ajustes complementares que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” .
Portanto, considerando todos os acordos internacionais que o Brasil soberanamente aderiu não existe nenhum risco jurídico efetivo de lesão à soberania sobre seu território e recursos naturais por implementar ou ser cobrado pela implementação de sua própria legislação interna e compromissos internacionais. Salvo para aqueles que ainda acreditam que tropas internacionais ocuparão a Amazônia sob o argumento de que o governo não está cuidando de um “patrimônio da humanidade”. É isso que ele quis dizer. A propósito, são parlamentares da base ruralista e que apoiam este governo que estão apoiando o Projeto de Lei 2963 de 2019 (aqui) que permite venda de grande propriedades de terras para estrangeiros na Amazônia, e também o PL 121/2020 que propõe a mineração e garimpo em terras indígenas (patrimônio da União).
Publicidade4) O objetivo de associações brasileiras que cobram maior compromisso ambiental deste governo é prejudicar o governo e o Brasil
Falso – O que as organizações brasileiras pedem é que o país continue a fazer a lição de casa que fez, por exemplo, entre 2005 e 2015 tendo reduzido significativamente os crimes ambientais na Amazônia e em mais de 80% os desmatamentos ilegais, período em que a economia do país mais cresceu em comparação com períodos anteriores e atuais (2005 a 2008). Ou seja, enfrentar responsavelmente os ilícitos ambientais não lesa o país, nem prejudica sua economia. Ao contrário, a postura atual do governo e o discurso negacionista flagrantemente deslocado da realidade é que está lesando os interesses econômicos, comerciais e financeiros nacionais. Basta ver o impacto dos fatos e do discurso nos países e cidadãos europeus em relação ao acordo União Europeia – Mercosul em função do postura negacionista em relação ao aumento do desmatamento na Amazônia (aqui).
5) Somos Líderes em conservação de florestas tropicais
Verdadeiro porém, o que conservamos, não é fruto de esforço algum deste atual governo, mas sim de 35 anos de construção de legislação e programas como o PPCDAm – Plano de Prevenção e Controle de Desmatamento na Amazônia, que este atual governo simplesmente “extinguiu” e de um código florestal que não fosse o Congresso Nacional e o Presidente Rodrigo Maia, em 2019 e início de 2020 teria sido também atropelado por propostas desse governo e aliados, como as MPs 867 e 910.
6) O Brasil é responsável por 3% das emissões globais.
Meia verdade – essa informação esconde uma outra importante verdade que é a nossa responsabilidade por um terço de todo desmatamento de florestas tropicais em todo planeta nas últimas três décadas (veja apresentação do João P. Capobianco do IDS na audiência Pública do Fundo Clima no STF). A região mais desmatada no Brasil, que é a Amazônia, tem uma participação de 5% na média de todo PIB brasileiro produzido na última década. Ou seja, é um desmatamento além de majoritariamente ilegal (mais de 95%), empobrecedor da região e do país e que queima a imagem dos produtos agropecuários brasileiros nos mercados mais exigentes.
7) Brasil tem 66% de preservação da vegetação nativa e utilização de 24% para agropecuária
Meia verdade – este dado não revela que a maior parte dessa floresta que subsiste está sendo preservada não por produtores rurais, mas em unidades de conservação e territórios indígenas (66% do total das áreas florestais brasileiras). E que essas terras vêm sendo ameaçadas cotidianamente por invasões, desmatamentos e degradação florestal, sem ação vigorosa e efetiva deste governo para conter.
Ao contrário os dados dos últimos dois anos de fiscalização são gritantes em termos de redução da fiscalização ambiental federal, inclusive nos municípios declarados pelo próprio governo federal como prioritários para controle dos crimes florestais. Basta ver que o número de invasores garimpeiros na Terra Yanomami chegou nesse governo a incríveis mais de 30 mil, colocando em risco toda a população indígena vulnerável por exemplo à contaminação pelo covid-19. Mais de 50% da área já aberta no Brasil situa-se na Amazônia Legal (70 milhões de hectares de acordo com INPE) e mais de 50% dessa área já aberta encontra-se abandonada ou sub-utilizada considerando-se índices médios agropecuários, segundo dados apresentados pelo Pesquisador Sênior do IMAZON, Carlos Alberto Veríssimo, apresentados na audiência pública do STF sobre o Fundo Clima (aqui) .
8) Nossa floresta é úmida e isso não permite a propagação de fogo no seu interior.
Falso – basta ver o que aconteceu com 20% do Pantanal a maior área úmida do planeta!
Estudos do IPAM demonstram que a cada ano a floresta tropical Amazônica está perdendo umidade e o fogo penetra e vai consumindo a floresta e reduzindo a umidade pelas bordas entrando a cada ano ainda mais pela floresta. As mudanças climáticas também são determinantes para esse fenômeno causado pelo homem. Além disso, os principais focos de incêndio estão associados diretamente à deposição de material orgânico resultado de desmatamento ilegal ocorrido recentemente na própria região. Veja mais neste estudo do IPAM .
9) Os incêndios acontecem onde o caboclo e o índio queimam suas florestas
Falso – os incêndios no Pantanal e na Amazônia em 2019 e agora em 2020 não foram promovidos por caboclos nem por índios. São incêndios criminosos inclusive com fortes indícios de que tenham sido iniciados por proprietários de terras em áreas já desmatadas ou ainda com vegetação para que percam suas características e atributos ecológicos com vistas ao uso agropecuário futuro.
Como foi o famoso caso do Dia do Fogo, quando dezenas de proprietários rurais (inclusive com imóveis dentro do Cadastro Ambiental Rural, sob a responsabilidade do Ministério da Agricultura) atearam fogo em leiras (material orgânico reunido em fileiras após o desmatamento ilegal) perdendo totalmente o controle sobre as chamas. Esse fato foi amplamente divulgado na mídia nacional (10 de agosto de 2019). Dados do Greenpeace indicam quase 500 propriedades teriam colocado fogo simultaneamente nessa data no Pará. Suspeita-se de situação semelhante (início de fogo em várias grandes fazendas simultaneamente) no caso dos incêndios que já queimaram mais de 20% do Pantanal.
10) Os focos de incêndios estão sendo combatidos mantendo a tolerância zero com o crime ambiental
Falso- a absoluta perda de controle e o baixo índice proporcional de autuação e embargos dos órgãos federais ambientais (sobretudo Ibama) sobre áreas desmatadas e queimadas (comparados com anos anteriores) recentemente (2018 a 2020) comprovam a falsidade dessa afirmação. (Veja aqui) E a apresentação de Maurício Guetta do ISA e João Paulo Capobianco do IDS na audiência pública do Fundo Clima ADPF 708 no STF dia 21 de setembro.
11) Junto com o Congresso Nacional governo busca a regularização fundiária para identificar os autores das infrações ambientais
Falso – o governo tentou (mas não conseguiu, porque o Congresso Nacional não deixou) converter em lei a MP 910 e premiar desmatadores ilegais com o título da terra, mediante simples declaração eletrônica de posse, mesmo em áreas desmatadas ilegalmente recentemente. Não fosse a mobilização social fortemente contrária o governo teria conseguido aprovar a MP 910. Tanto é verdade que o próprio governo foi contra votar o texto substitutivo à MP 910, quando o congresso retirou dele as “benesses propostas pelo governo aos criminosos ambientais”. Além disso o governo alega que os desmatamentos ocorrem em assentamentos de reforma agrária e agricultura familiar mas não aplica a lei vigente para regularizar mais de 95% dos imóveis (de até 4 Módulos Fiscais) objeto de requerimentos em processamento no INCRA.
12) Governo está aprimorando o emprego de tecnologias para controle dos ilícitos ambientais
Meia Verdade – mais de 60% dos desmatamentos dos imóveis rurais no Mato Grosso, estado responsável pelo 2o maior índice de desmatamento na Amazônia em 2019 e 2020 ocorreu dentro de imóveis registrados no Cadastro Ambiental Rural de MT. Nesse mesmo período o governo federal reduziu o número de multas e de embargos em toda Amazônia, em mais de 30% (dados ISA e IDS na audiência pública Fundo Clima ADPF 708. O CAR permite a autuação ambiental até mesmo automática e imediata. Não se tem notícias de ações do governo federal para efetivar essa sanção automática e penalizar os desmatadores ilegais dentro de CAR, nem mesmo para embargar o uso econômico ilegal dessas áreas ou promover a sua recuperação.
13) O Pantanal sofre do mesmo problema que os incêndios na Califórnia
Falso – no Pantanal havia menos de 500 combatentes em atividade durante o auge dos incêndios e queimou até hoje mais de 2,3 milhões de hectares. Enquanto que na Califórnia (EUA) foram mais de 14 mil combatentes e 890 mil hectares afetados. Essas diferenças obviamente tem a ver com realidades econômicas, sociais, ecológicas e políticas completamente distintas, sendo que no Brasil foi queimado 20% de todo um Bioma considerado pela Constituição federal como Patrimônio Nacional.
Lamentavelmente o atual governo demonstra convicta disposição de seguir negando um dos seus principais problemas. Sinal de que, infelizmente, o pior do ponto de vista de governança da sustentabilidade (aumento de crimes, infrações, grilagem, desmatamento, queimadas e emissões) e consequentemente de queimação de filme do nosso país aqui e sobretudo lá fora ainda está por vir.
Se o executivo segue firme nessa rota e o Legislativo, no máximo, consegue reagir sem dar sinais de que pode ir além disso, caberá ao Supremo Tribunal Federal conter a sanha obsessivo-predatória desse modelo de governança e desenvolvimento imposto pelo atual governo.
Nesse sentido, num próximo artigo examinarei o resultado da audiência pública ocorrida essa semana no Supremo Tribunal Federal e que tratou exatamente do desmonte da política ambiental brasileira e da paralisação dos investimentos do Fundo Clima e as perspectivas dessa Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF 708 gerar alguma decisão que consiga alterar um pouco o rumo das coisas no campo da Política e do Direito Ambiental e Climático brasileiro.
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