Um dos planos mais importantes na agenda do desenvolvimento sustentável do Brasil “vazou” para a imprensa nesse mês de novembro causando alguma perplexidade.
Primeiro pelo simples fato de não ter sido lançado oficialmente (ainda), como costuma ser feito com planos de tamanha pretensão, apesar de já estarmos às vésperas de completar o segundo ano de governo, e não por acaso o segundo ano de aumento expressivo dos desmatamentos e queimadas na região Amazônica. Portanto, há uma inação e uma letargia inaceitáveis.
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Segundo, a perplexidade se dá pelo seu conteúdo exótico, errático e incompleto. Na verdade, desmentindo o título, há muito mais de sete erros como bem demonstrou a análise assertiva feita por Suely Araújo, Cláudio Ângelo e Márcio Astrini do Observatório do Clima (AQUI)
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Trata-se do Plano “Mourão” ou Amazônia 2030 como batizado oficialmente pela Comissão Nacional da Amazônia (CNAL).
Não me considero dono da razão, longe disso, então peço a gentileza aos que lerem essa análise e dela discordarem fundamentadamente que apresentem suas contrarrazões. Comprometo-me a considerá-las num próximo artigo, caso tenham consistência e dialoguem com a realidade.
Vamos aos sete erros:
1º Suposta ameaça e cobiça internacional sobre a Amazônia
As premissas que fundamentam o Plano Mourão de que há uma ameaça internacional sobre nossa soberania ignoram solenemente que em todos os acordos ambientais internacionais dos quais o Brasil faz parte, formal e oficialmente, desde Estocolmo (1972), existem diretrizes explícitas que asseguram a plena soberania do Brasil sobre seus recursos ambientais e biológicos.
O Brasil foi o primeiro país a assinar as Convenções de Biodiversidade e de Clima, em 1992 (durante a Rio 92). Ratificou-as pelo Congresso Nacional e as promulgou pelo punho (ou caneta) do próprio Presidente da República.
Portanto, tais compromissos internacionais, (dentro outros vários tão importantes quanto) nada tem de afronta à soberania, tampouco preveem sanções expropriatórias de nossas terras ou da nossa biodiversidade. Trata o governo, mais uma vez, de criar um inimigo invisível, para fugir ao enfrentamento do inimigo real, que está aqui mesmo no Brasil derrubando e queimando florestas impulsionado pela omissão deste governo e pelos discursos erráticos e ufanistas do próprio presidente que, não raras vezes, desautoriza o próprio Mourão quando este, em raras oportunidades, diz algo de bom senso que mereça ser considerado.
Vejam o que está expresso em dois dos mais importantes acordos internacionais em relação à nossa soberania sobre os recursos naturais:
Preâmbulo de Convenção de Clima (AQUI)
“Lembrando também que os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios do Direito Internacional, têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos segundo suas políticas ambientais e de desenvolvimento e a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não causem dano ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional,”
“(…)Reafirmando o princípio da soberania dos Estados na cooperação internacional para enfrentar a mudança do clima…”
Preâmbulo e Artigo 3º da Convenção de Biodiversidade (AQUI)
Reafirmando que os Estados têm direitos soberanos sobre os seus próprios recursos biológicos,
Artigo 3o Os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios de Direito internacional, têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos segundo suas políticas ambientais, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não causem dano ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional.
2º Equívoco – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), responsável há décadas por monitorar os desmatamentos e queimadas no Brasil não é citado nenhuma vez no Plano.
Ibama e ICMBio são citados apenas duas vezes em mais de 60 páginas do documento e slides. Esses órgãos são cruciais para implementação de qualquer ação de estado que diga respeito ao tema. Esses órgãos não integram o Conselho Nacional da Amazônia (CNAL) como membros formais.
Não pode ser levado a sério um plano que não articula e nem é concebido em sinergia e coordenado com quem tem o dever institucional e legal de executá-lo na ponta. Quem estuda e pratica “ciência” gerencial e de planejamento modernos, sabe o óbvio, que não tem como acontecer na prática e com efetividade e eficiência uma ação de estado organizada cujos responsáveis legais e institucionais para operar na ponta sequer participam do planejamento da ação.
Talvez se esqueça Mourão de que civis não operam como militares. O que não é combinado, planejado, acordado, está contratado para não acontecer. Quando é combinado, acordado e planejado conjuntamente já é muito difícil fazer acontecer, imagine sem esse combinado.
3º Equívoco – Há uma única e periférica menção ao Plano de Prevenção e Controle (PPCDAm) dos desmatamentos na Amazônia, que durante mais de 15 anos foi responsável pela redução efetiva em mais de 80% dos desmatamentos na região.
O quadro de ações do Plano Mourão, em uma única oportunidade fala em “atualização do PPCDAm” sem, contudo, fazer referência específica a nenhuma entrega efetiva a ele correlacionada (ação emergencial número 3).
Um “novo” plano que desconsidera absolutamente todas as avaliações oficiais sobre as estratégias realizadas por governos anteriores, sobre suas lacunas, eventuais falhas, mas também virtudes … não pode ser levado a sério¹.
O problema não é recente. O mundo não começou ontem. O novo Plano parte do zero, como se nada tivesse sido feito e nada tivesse sido alcançado. Não é crível um plano que ignore absolutamente a história da gestão pública no tema.
4º Equívoco – O Plano Mourão não propõe a criação de novas unidades de conservação, não fala em fortalecer e implementar as unidades de conservação já criadas, não cita a importância dos territórios indígenas responsáveis, junto com as unidades de conservação, por proteger aproximadamente 50% do território da Amazônia (onde os desmatamentos estão crescendo vertiginosamente).
Análises do Instituto Socioambiental (ISA), extraídas dos dados do INPE revelam, por exemplo, que nas TIs Trincheira-Bacajá, Kayapó e Mundurucu, no sudoeste do Pará, o desmatamento aumentou, respectivamente, 827%, 420% e 238%, entre março e julho. E o governo sabe disso, mas ignora solenemente o problema, apesar dos esforços do Ibama, ICMBio e da Funai, que são ignorados no Plano Mourão.
4º Equívoco – O Plano Mourão propõe o aumento de operações estratégicas na contramão do que ocorre na prática
Vejamos os dados apresentados pelo vice-presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade, João Paulo Ribeiro Capobianco, durante a audiência pública ocorrida no Supremo Tribunal Federal, em 21 de setembro passado, e que tratou das omissões deste Governo (desde 2019) em relação as ações para a Amazônia. O IDS coletou, analisou e apresentou ao STF análises sobre os dados oficiais de autos de infração e embargos feitos pelo Ibama, entre 2019 e 2020, comparando-os com a média ocorrida no período de implementação do PPCDAm, com foco nos municípios definidos pelo próprio governo federal como críticos para a contenção dos desmatamentos ilegais na Amazônia. Vejamos:
(a) Autos de Infração
Média de autuações anuais no período de 2009 a 2018 = 4.904
Autuações em 2019 = 2.786, redução de 43% em relação à média dos dez anos anteriores.
Autuações em 2020 = 1.497 até 18/09/2020, redução próxima de 70% projetado para 2020 caso mantenha a média.
(b) Embargos por dano à flora
Média anual no período de 2009 a 2018 = 1.958
Embargos em 2019 = 1.641, redução de 16,1% para toda Amazônia e de 27,2% nos municípios prioritários.
Embargos em 2020 = 440 até 18/09/2020, projeção de redução superior a 70% em relação à média do período do PPCDAm.
5º Erro – Na ação 2.1.1.2 prevista no Plano Mourão fala-se em Ampliar as punições contra desmatamento e queimadas ilegais, quando após dois anos de governo o que se viu até agora foi uma queda brutal no número geral e no valor de multas.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) registrou 2.518 autuações ambientais de janeiro a maio em todo Brasil. É uma queda de 54% em relação ao mesmo período de 2019.
O 1º ano de governo do presidente Jair Bolsonaro já havia registrado a menor marca desde 2000. O valor total dos autos de infração lavrados no período caiu para R$ 390 milhões. No mesmo período de 2019, foi de R$ 1,06 bilhão. A queda foi de 63%.
Agrava o quadro de inação programada deste governo em relação ao tema que o Plano não prevê ação específica para punir desmatamentos ilegais onde ele é mais evidente, detectável, mensurável e punível.
Os imóveis dentro do Cadastro Ambiental Rural (CAR) são onde os desmatamentos podem ser detectados automaticamente e o governo detém os dados (CNPJ, e-mail, endereço) dos responsáveis jurídicos (proprietários ou posseiros) podendo aplicar-lhes multas e embargos automaticamente, inclusive remotamente, dentro do próprio Sistema eletrônico do CAR, para multar, embargar, suspender ou cancelar os efeitos jurídicos do cadastro. Mas não se tem notícia de que isso esteja ocorrendo.
De acordo com dados do Instituto Centro de Vida de 2020 (AQUI)
- Mais de um quarto (27%) de todo o desmatamento observado em Mato Grosso entre 2012 e 2017 ocorreu em fazendas de soja.
- 95% do desmatamento em fazendas de soja entre 2012 e 2017 ocorreu sem autorização dos órgãos ambientais, sendo, portanto, ilegal.
- 80% por cento do desmatamento ilegal em fazendas de soja ocorreu em 400 imóveis, que representam apenas 2% do número total de fazendas de soja no estado. Em sua maioria, essas fazendas são grandes imóveis rurais (73%).
Se o governo quisesse realmente punir quem desmata ilegalmente já teria começado por estes acima citados, pois ele tem acesso automático a todos os dados dos titulares desses imóveis dentro do próprio CAR e sequer precisaria enviar fiscais em campo para detectar o ilícito e emitir a multa.
Se governo não faz a lição de casa, nem mesmo onde é mais fácil e óbvio fazê-lo, difícil crer que irá fazer onde tal ação exige muito mais investimento, vontade política e capacidade gerencial para tanto.
6º Erro – Plano fala em ampliar pena por crimes de grilagem (ação 1.1.1.2), entretanto Governo se esforça para premiar a grilagem.
O governo, se de fato quer punir quem ocupa e desmata ilegalmente florestas públicas, deveria começar por cancelar o CAR em imóveis situados em terras públicas. São de acordo com o IPAM mais de 11 milhões de hectares de áreas de terras públicas com florestas que estão cadastradas como posses privadas no CAR.
Tal circunstância ilegal poderia gerar ação de ofício do Serviço Florestal Brasileiro que gerencia as florestas públicas federais junto à AGU, pelo INCRA ou até mesmo junto ao Ministério Público Federal para promover ações criminais por ocupação de terras públicas. Além disso o próprio SFB pode (na verdade deveria) cancelar ou, no mínimo, suspender quaisquer efeitos jurídicos do CAR nesses imóveis.
Mas enquanto isso o governo através da dupla Agro Ministerial Tereza Cristina e do Nabhan Garcia tentou a todo custo aprovar a MP 910 – da Grilagem que ia na contramão total do aumento de pena, ao concede o tão sonhado título da terra como prêmio para quem desmatou e ocupou terras públicas com floresta inclusive até recentemente (há menos de dois anos).
7º Erro – Reverter a arrecadação de multas por infração ambiental para os municípios onde ocorreram
O Plano Mourão fala em alocar recursos de multas nos municípios onde as infrações ocorreram. Parece razoável tal afirmação, caso de fato houvesse multa a ser cobrada e recolhida.
Em março de 2019, o governo determinou contingenciamento de verbas em todos os ministérios, por meio do decreto 9.741/2019. No caso da pasta do Meio Ambiente, o corte foi de R$ 187 milhões, cerca de 23% do orçamento. Documento obtido pelo Psol junto ao Siop (Sistema Integrado de Orçamento e Planejamento) mostra que, na área de Controle e Fiscalização Ambiental, houve corte de 24% (R$ 24 milhões).
Do início de seu governo até aqui os indicadores mostram menos fiscais, menos multas e mais desmatamento. Para conter críticas internacionais ao aumento no desmate em 2019, o governo optou por chamar as Forças Armadas.
Gastou R$ 124,5 milhões em uma operação de GLO (Garantia de Lei e da Ordem) no ano passado e R$ 60 milhões neste ano –valor inicial no caso de 2020, pois a operação foi estendida até 10 de julho. A maioria das multas acaba não sendo paga. O Relatório de Gestão do Ibama de 2018 aponta que o tempo médio de julgamento das infrações era de 3 anos e 3 meses. De 14.787 autos de infração lavrados, 1.778 foram pagos. O valor desses pagos, no entanto, R$ 13,8 milhões, corresponde a 0,3% do valor total das multas.
Pior que isso este governo travou e na verdade cancelou o programa criado pela gestão anterior que reverteria valores de multas não captados para ações de restauração florestal em bacias hidrográficas críticas como a do São Francisco. Seriam mais de R$ 2 bilhões de multas não arrecadadas que seriam convertidos em ações efetivas pro-meio ambiente.
Como se não bastasse esse mesmo governo criou uma Câmara de Conciliação que travou todo andamento dos julgamentos de multas pois até agora, depois de sua criação em 2019 só se reuniu cinco vezes quando tem dezenas de milhares de autos de infração e multas para “conciliar”. Portanto o Plano fala em investir nos municípios de origem das infrações recursos de multas que nunca serão arrecadados. Pelo menos por essa geração de gestores públicos.
7º Erro – Expropriação de terras de quem desmata ilegalmente (ops! 8º erro, extrapolamos os sete previstos no título!)
O Plano anunciou, precipitadamente que o governo iria expropriar terras de quem desmata ilegalmente. Apesar de fazer sentido conceitualmente, pois quem não cuida de sua propriedade, de acordo com as leis e a constituição, não deveria ter o direito à propriedade garantido pelo Estado (princípio da função da propriedade) tratou-se de uma piada de péssimo gosto.
1° porque não se desapropria terras de posseiros. Só se desapropria de proprietários. O que se faz em relação a posseiros ilegais é não prometer nem criar expectativa de concessão do título de propriedade. E este governo o que fez até agora foi trabalhar na via contrária, argumentando que quer dar título de terra aos posseiros, mesmo desmatadores. Para poder responsabilizá-los pelos crimes e infrações ambientais. Não faz sentido dar título para depois desapropriar;
2° no caso de propriedades privadas, antes de se falar em desapropriação, é preciso iniciar um processo de sanção administrativa, o que está totalmente paralisado pela câmara de conciliação (de multas administrativas) criada pelo atual ministro de meio ambiente.
3° não se faz desapropriação sem um longo e exaustivo devido processo legal administrativo. Ou seja, o estado (nesse caso a AGU e ou Incra) tem que desenvolver um aparato jurídico-judicial totalmente preparado e dedicado exclusivamente para isso. Tratar-se-ia, caso fosse para valer, de uma maratona jurídico-administrativa que seria certamente judicializada e, para ser realista, com baixa probabilidade de sucesso perante o judiciário (altas cortes) tendente a ser contrário à tese da desapropriação por descumprimento de legislação ambiental.
Ninguém em sã consciência, acreditaria que um presidente que prometeu (e está cumprindo) não demarcar mais um palmo (ou centímetro) de terras indígenas e quilombolas ou unidades de conservação iria investir uma super energia política, administrativa e jurídica para retirar títulos de propriedades pelo Brasil. Tanto é que essa promessa contida no Plano Mourão, não durou uma hora até ser desautorizada pelo Presidente.
Pois bem, passando a régua, o que podemos concluir até aqui pelo exposto é que esse Plano é mais uma peça “para Inglês ver”, como também são as metas anunciadas por ele há semanas, como escrevemos no artigo anterior desta coluna.
Muito difícil crer que esse plano é para valer.
O que de fato é possível dizer que o Plano Bolsonaro-Mourão conseguiu realizar de concreto até agora pode ser resumido nos seguintes cinco indicadores aferíveis e mensuráveis:
1) Enterro do PPCDAm plano que alcançou mais de 80% de redução dos desmatamentos entre 2005 e 2015
2) Desautorização do INPE no monitoramento dos desmatamentos
3) Paralisação total nos processos de criação e implantação de Unidades de Conservação e demarcação de terras indígenas
4) Redução expressiva de número de fiscais, orçamento, operações, multas, embargos, e paralisação no julgamento das multas administrativas
5) Aumento real e consistente dos desmatamentos ilegais na Amazônia por dois anos consecutivos: 29% em 2019 (quase 10mil km2) a maior taxa em 11 anos e aumento de mais 20 a 9,5% em 2020, para outros 11 mil km2.
¹ Veja as seguintes avaliações oficiais disponíveis a respeito do PPCDAm (AQUI e AQUI)
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