Bajonas Teixeira de Brito Júnior*
Em meio ao terror instalado com o ruído avassalador da lama que vinha chegando, a diarista Paula Geralda Alves subiu em sua moto e, ao invés de fugir, foi dar o alerta aos vizinhos. A professora Eliene Almeida, diretora de uma escola municipal, não recebeu nenhuma comunicação da Vale sobre o paredão de lama de 20 metros de altura que se aproximava. Nem ouviu as sirenes, porque apesar de inventadas há mais de cem anos, a Vale não havia instalado nenhuma na região. Foi seu marido que chegou gritando à escola desesperado com a aproximação da tsunami que vinha esmagando tudo pelo caminho. Eliene não entrou em pânico, mas organizou rapidamente a saída dos 58 estudantes, em idades de 11 a 16 anos, e conseguiu salvá-los levando-os para um local seguro.
A dona de casa Rosa Helena da Silva relatou que foi um motorista de um caminhão que, aos gritos, alertou as pessoas e começou a embarca-las na carroceria. Pelo relato fica claro que dezenas de pessoas foram salvas por esse motorista anônimo que partiu com a carroceria apinhada de gente: “Saiu todo mundo desesperado, gritando, entramos na caçamba do caminhão pulando por cima dos outros. Foi uma tragédia. A água veio fazendo um barulho muito grande, uma zoeira que me deu o maior medo da minha vida, e lama em cima de lama”, relembrou.
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É possível ainda que outras pessoas com iniciativa e sangue frio tenham salvo muita gente. A mídia, contudo, não procurou descobrir informações sobre elas, nem sequer sobre aqueles que sabidamente salvaram dezenas do desastre causado pela negligência criminosa da Vale. Só a Vale-Samarco, que era quem tinha a obrigação de ter um plano para emergência, não salvou ninguém. Não só não salvou como, com seu poder sobre a mídia, praticamente anulou as ações das pessoas que arriscaram a vida para salvar as outras.
Dessas pessoas, quase nada ouvimos falar. E a razão é óbvia: se a mídia fizesse delas heróis, seus feitos seriam uma denúncia direta à toda negligência criminosa da Vale. Quem sabe o nome do motorista do caminhão? Ninguém procurou saber. E a professora Eliene Almeida, como ela é? Em toda a rede, dela apenas encontramos uma foto imersa em sombra em que não é possível discerni-la.
Da diarista Paula Geralda Alves não encontramos fotos nem outros depoimentos. Enfim, é do interesse da empresa que essas pessoas sejam soterradas, porque uma parte muito significativa da memória do crime cometido será enterrada junto com elas. No entanto, sem essa memória do drama, perdemos a capacidade de efetivamente apreender e dimensionar o que ocorreu, ou seja, de dar sentido à tragédia.
O sentido propriamente dito só pode ser construído pelo singular, por cada uma das pessoas que perderam suas vidas. E por cada uma das pessoas que ajudaram a retirar das mãos da morte, das mãos da Vale naturalmente, dezenas de outras vítimas potenciais. Seremos sensíveis à tragédia quando pudermos nos colocar no lugar dos mortos, lugar que permanece inacessível se construído apenas como um abstrato.
Na narrativa da mídia, os mortos ou não eram mencionados ou falava-se deles apenas empregando termos técnicos assépticos e destituídos de drama, como o número de “mortes confirmadas” e de “desaparecidos”. Nesse modo de contar a estória nunca existiu uma tarde normal, como outra qualquer, em que as crianças brincam despreocupadas; não houve o desespero de uma menina indefesa arrastada por uma onda monstruosa de lama ao voltar para casa; nem os gritos das mães tomadas pelo pavor de não verem seus filhos nunca mais, nem o heroísmo dos que se arriscaram para salvar dezenas de crianças de uma escola.
É pura ilusão acreditar que, ao classificar a lama da Vale como “a maior tragédia ambiental da história do Brasil”, se faz uma acusação séria aos responsáveis por ela. Não se faz porque, antes de tudo, a história do Brasil é a história do crime ambiental. Nem mais nem menos. Para citar um único exemplo, em paralelo com a tragédia do rio Doce ocorria o incêndio na Chapada Diamantina (BA), considerado um dos três maiores deste século.
Mas “maior tragédia ambiental” ou “um dos três maiores” incêndios do século, são cartas marcadas do discurso quantitativo da grandeza e dos orgulhos nacionais (“O Amazonas, o maior rio do mundo”, “o Maracanã, o maior estádio da América do Sul”, “O carnaval, o maior espetáculo da terra”, etc.). Repetir apenas (como a mídia e o governo não cessam de fazer) que essa é “a maior tragédia ambiental da história do Brasil” é criar o álibi perfeito para obstruir toda justiça aos mortos. Em geral, sempre que se viola um luto a consequência é fazer perdurar uma maldição. E a “grande” maldição do Brasil é impunidade.
Ao contrário, o sofrimento está nos menores gestos. É preciso recuperar os nomes, os trajes, a rotina, os significados daquele dia, a expectativa daquelas crianças, para sentir o que aconteceu. É preciso saber se a menina Emanuely Vitória, de 5 anos, estava agasalhada, se trazia consigo um brinquedo e se calçava sandália ou tênis.
A tragédia começa a ganhar dimensões humanas quando resgatamos as memórias de dentro dos escombros recobertos por estatísticas. Ou quando encaramos o fato de que a perda irremediável de uma experiência do mundo ocorreu ali, como viu a professora Eliene Almeida:
“Você pode construir uma escola nova, mas todo o trabalho que ocorreu naquela escola em Bento, o que significava para a comunidade, foi embora para sempre”.
O plano de recuperação do rio Doce, imposto sem discussão com a sociedade e, em especial, sem que fossem ouvidos os afetados, e contando com um fundo público a ser gerido pela própria empresa, foi todo construído com base no fetichismo dos grandes números, repetidos como mantras tecnocráticos. No fundo, sua imposição autoritária foi facilitada pelo enterro das narrativas divergentes pelo trabalho de encobrimento feito pela mídia. Esta só nos falou de números.
Mas o que acontece se ficamos sabendo que o rompimento das barragens jogou no rio 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos? Nada, porque não temos como conferir sentido nem a palavra “rejeitos” (lama, já nos diz algo) nem a expressão quantitativa “62 milhões de metros cúbicos”. Ao contrário do que a mídia quer dar a entender, também nada ganhamos se traduzimos tudo isso em 20 mil ou 30 mil “piscinas olímpicas cheias de rejeitos”. Se não temos nem parâmetros para uma piscina olímpica, como teremos para 30 mil?
A mesma coisa acontece quando nos é dito que, nas duas margens de rios e córregos, a contaminação se estende por mais 800 quilômetros. Uma mudança perceptiva só começa quando consideramos que as aldeias, comunidades, vilas e cidades em toda essa área foram mortalmente afetadas. Só então surge um caminho para conferir sentido à tragédia, pela dimensão humana dos seus efeitos. É nesse momento que os 3, 5 milhões de moradores dessas cidades e vilas deixam de ser mera abstração numérica. É quando nos colocamos no lugar deles, refazendo seus sofrimentos por um ato da imaginação, que efetivamente somos afetados pelos danos que eles sofreram, e que continuarão a sofrer.
Ah, sim. O inquérito policial terminou coberto de números: com 13 volumes, 2.432 páginas e 100 depoimentos, pediu a prisão de sete pessoas por crimes que podem somar 30 anos de prisão. Quantos foram presos? E com tantos volumes e tantas páginas, certamente haverá centenas de ocasiões para os advogados de defesa contestarem laudos, depoimentos, fatos, e arrastar o processo até o fim dos tempos.
*Bajonas Teixeira de Brito Júnior – doutor em filosofia, UFRJ, autor dos livros “Lógica do disparate”, “Método e delírio” e “Lógica dos fantasmas”. É professor do departamento de comunicação social da UFES
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