Entre as punições administrativas previstas pela atual legislação contra magistrados está a aposentadoria compulsória. Essa é a mais grave das cinco penas disciplinares que podem receber os juízes vitalícios, condição conseguida depois de apenas dois anos de carreira (saiba como funciona as regras neste documento produzido pelo CNJ). Afastado do cargo, o condenado continua a receber seu salário de acordo com o tempo de serviço.
Entendida por parlamentares como um privilégio, a aposentadoria compulsória como punição a juízes foi retirada da Constituição Federal pela reforma da Previdência. Mas, incompleta, a ação legislativa não acabou com essa previsão.
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Neste ano, já após a entrada em vigor da emenda constitucional que efetivou a mudança nas regras de aposentadoria, o Conselho Nacional de Justiça puniu um magistrado com a aposentadoria compulsória. Ao todo, 66 magistrados receberam esta pena desde 2006, segundo os dados do CNJ.
“Eles estão forçando uma barra. Não existe mais aposentadoria como punição disciplinar e a bem do serviço depois da reforma da previdência. Cabe somente a regulamentação da Loman (Lei Orgânica da Magistratura) por iniciativa do Judiciário de outras punições”, afirma o deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), relator do texto da Reforma da Previdência na Câmara em 2019.“Cabe um posicionamento do Supremo e eles vão perder. Eles não têm como contabilizar previdência para este tipo de caso. Acredito que deve ser a partir da promulgação do texto da reforma, pois não existe uma previsão na mudança de uma transição para estes casos”, avalia o parlamentar.
Projeto no Senado
Mas para o senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), a alteração não acabou com a possibilidade da concessão de aposentadoria compulsória como medida de punição contra os magistrados. “A retirada da palavra aposentadoria da constituição deixou um vazio. E o CNJ continuou a aplicar a lei orgânica da magistratura. Não basta termos o que a reforma da previdência fez. Devemos colocar expressamente esta proibição”, afirma o senador que é o relator a PEC 58, proposta que trata do tema em análise pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) desde abril de 2019.
O texto do Senado, além de extinguir com essa remuneração para os punidos, também prevê a redução das férias dos juízes de 60 para 30 dias. O senador promete reapresentar seu relatório favorável ao texto assinado por 32 senadores quando o Senado retomar as atividades das comissões, paralisadas desde o começo da pandemia. O primeiro parecer apresentado pelo senador do Paraná foi emitido em julho do ano passado, mas não chegou a ser colocado em pauta no colegiado. “Integrantes do STF disseram que iram mandar um projeto para mudar essa questão e a das férias, mas até agora não foi enviado nada”, lembra o senador. Alteração da lei da magistratura só pode começar a tramitar no Congresso por iniciativa de integrantes do Judiciário e normalmente são realizadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).Propostas na Câmara
O mesmo entendimento tem o deputado Rubens Bueno (Cidadania-PR), autor da PEC 163/2012, que também prevê o fim da aposentadoria compulsória. Para o parlamentar, a reforma da previdência não basta para acabar com o que ele classifica como “privilégio”. O texto de Bueno já tem parecer favorável na CCJ da Câmara desde agosto de 2019, mas ainda não foi apreciado. “A proposta só será arquivada se houver deliberação, e não houve. Nesse mundo de privilégios, dos que sempre olham para o seu próprio umbigo, interpretam o que lhes interessa mesmo ao arrepio da ética”, avalia o deputado ao defender que o texto seja votado pelos demais deputados.
Outros dois projetos de lei na Câmara tentam mudar o entendimento da Justiça sobre condenações de agentes públicos e citam a aposentadoria compulsória dos magistrados como justificativa para as mudanças. Os dois casos identificados pela reportagem são alterações no artigo 92 do Código Penal que regulamenta a forma como deve ser determinada a perda da função pública para os condenados.
O parágrafo único do artigo é o foco das mudanças propostas por dois deputados. O texto original define que a perda dos cargos não é automática “devendo ser motivadamente declarados na sentença”. No projeto de lei 6170/2019, do deputado Sanderson (PSL-RS), o texto faz que os condenados sejam retirados das funções imediatamente se forem condenados pelos crimes de corrupção ativa e passiva, peculato, concussão, prevaricação, violação de sigilo funcional ou lavagem de dinheiro. Já a proposta de Marcelo Ramos, o projeto de lei 1627/2019, excluiu apenas o crime de corrupção passiva e torna a perda do cargo também automática neste caso específico.
“Não são raros os casos de magistrados e membros do Ministério Público que, a despeito de terem sido condenados ‘premiado’ com decretação de aposentadoria compulsória – sanção administrativa máxima permitida pela Constituição Federal”, afirma o parlamentar do Rio Grande do Sul. “Assim, é comum nos depararmos com situações em que magistrados e membros do Ministério Público condenados por corrupção não perdem a função ou a aposentadoria e ainda são “premiados” com aposentadoria compulsória, já que essa é a sanção administrativa máxima permitida pela Constituição Federal”, afirma Ramos. Os dois projetos ainda estão em fase inicial de tramitação e ainda não passaram pelos principais comissões da Câmara.
“Pouco importa a voluntas legislatóris”
O Congresso em Foco pediu uma posição do CNJ sobre a concessão da aposentadoria compulsória e, especialmente, sobre a aplicação da medida em um caso neste ano após a promulgação da emenda constitucional que alterou as regras da previdência. Em resposta a reportagem, o CNJ enviou uma decisão (leia a íntegra) de abril deste ano assinada pelo presidente do conselho, ministro Dias Toffoli. O também presidente do STF, argumenta que a alteração não vedou “expressamente” esse tipo de penalidade e apenas suprimiu do texto constitucional a referência à aposentadoria compulsória.“Nesse contexto, pouco importa que a voluntas legislatoris do Constituinte Derivado tenha sido o desejo de suprimir a aposentadoria compulsória como pena imponível a um juiz, a pretexto de que se trataria de uma suposta benesse, e não de uma autêntica penalidade. Importa, isto sim, que a EC nº 103/2019, sem vedá-la expressamente, limitou-se a suprimir do texto constitucional a referência à aposentadoria compulsória. Ocorre que o próprio texto constitucional continuou a prever, no art. 103-B, § 4º, III, da Constituição Federal, a possibilidade de o Conselho Nacional de Justiça aplicar, além da remoção e da disponibilidade, “outras sanções administrativas”, afirma o ministro.
A mesma posição tem André Portugal, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra (Portugal). Veja abaixo a íntegra da análise feita a pedido do site pelo advogado e especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) :
“A Emenda Constitucional nº 103/2019, popularmente conhecida como Reforma da Previdência, trouxe consigo uma intenção nada velada de afastar a aposentadoria compulsória do feixe de sanções administrativas aplicáveis a magistrados. Essa intenção foi colocada em prática por meio da retirada, do texto constitucional, de todas as menções ao termo “aposentadoria”, quando ele era usado no sentido de “sanção”. E ela procedeu da mesma forma em relação a membros do Ministério Público.
A consequência disso é que restaram no nosso sistema jurídico apenas as menções infraconstitucionais à aposentadoria como sanção administrativa de magistrados. Essas previsões estão na LOMAN (Lei Orgânica da Magistratura Nacional). E, como sabemos, as leis devem deferência à Constituição, não o contrário. De todo modo, embora essa certamente fosse a intenção do legislador, fato é que o novo texto constitucional foi elaborado sem que se possa, de imediato, extrair essa conclusão. Primeiro, porque em nenhum momento se faz referência expressa à vedação à aposentadoria compulsória a magistrados. Segundo, porque a mera exclusão do termo “aposentadoria” não encerra, por si só, a possibilidade de que essa penalidade seja aplicada. O artigo 103-B, §4º, III, da Constituição pode nos ajudar a compreender a questão.
Esse artigo traçava e continua a traçar um rol exemplificativo de sanções que o magistrado pode sofrer. Antes, ele fazia menção expressa à aposentadoria, que vinha acompanhada da remoção e da disponibilidade, além de ‘outras sanções administrativas’.
Com a emenda, ele vigora com o mesmo texto, extraído o termo “aposentadoria”. O ponto relevante, aqui, é a permissão a que outras sanções administrativas sejam fixadas.
E a LOMAN cuida precisamente de estabelecer, naturalmente que com base constitucional, as sanções aplicáveis aos magistrados. Como se sabe, ela prevê não só a aposentadoria, como a demissão do magistrado, hipótese essa que também não é mencionada no dispositivo acima mencionado.
A vigorar uma lógica de que, por não estar mais enquadrada neste e nos outros dispositivos constitucionais que mencionam penalidades aos magistrados, a aposentadoria teria sido imediatamente afastada da ordem jurídica, teríamos que admitir que também a demissão não poderia continuar a existir, o que, sabemos, recairia em um absurdo.
O único argumento em favor da tese de que a aposentadoria compulsória seria, agora, inconstitucional, deveria se basear em uma combalida ideia de “intenção do legislador”, que apontaria para a vedação a esse tipo de sanção. Mas se trata de tese que, em termos teóricos, é inconsistente.
Argumentos para o afastamento da aposentadoria há, e aos montes. Trata-se mesmo de sanção que, no final das contas, não tem tanto o caráter de sanção, chegando mesmo me parecer acertado afirmar que ela é, antes, um privilégio indevido e antirrepublicano. Para isso, no entanto, são necessárias redações legislativas mais precisas.”
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