Aparentemente seria um contrassenso criticar o Movimento “Passe Livre” nos ônibus (rima com “boca livre”) por falta de radicalismo. Afinal, há rebeldia para todos os gostos. Verbal e física. Palavras de ordem contra esse ou aquele governador e/ou prefeito e, por parte de algumas facções do protesto, quebra-quebra.
Nada de novo. Me lembro de um episódio desses, no Rio, nos anos 50, durante o governo JK, contra o aumento de preço dos bondes. Aliás, Juscelino na época recebeu pessoalmente representantes dos manifestantes…
Eu tinha cinco anos e morri de medo dos bondes pegando fogo. Depois , nos anos 60, acabaram com os bondes e de lá para cá isso já se repetiu dezenas de vezes, mas a mobilidade urbana só fez piorar.
Passe livre: uma inconsequência
É consequente colocar-se como reivindicação central a gratuidade? O transporte público nunca é gratuito, sempre será pago pelo usuário, pelo contribuinte ou – em doses diferenciadas – por ambos, como hoje acontece. É simplesmente injusto que os jovens ricos de classe média deixem de pagar ou paguem menos, quando podem pagar.
Os trabalhadores do setor formal, em boa parte, recebem subsídio das empresas e em relação ao setor informal é preciso criar mecanismos eventualmente vinculados a programas do gênero Bolsa Família, mas que resultem em alguma contrapartida de instrução ou formalização de atividade.
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Falta transparência às planilhas das empresas de ônibus, que precisam ter tarifas (ou receber subsídios) que mantenham economicamente viável o negócio – as experiências de estatização não deram certo –, mas que não resultem em lucros abusivos. E, naturalmente, têm que acabar as notórias “caixinhas” das casas legislativas e esferas governamentais, a mais corriqueira das corrupções. Precisam, enfim, ser investigadas e severamente reprimidas.
Para a imensa maioria da população usuária, muito pior que um aumento de tantos quantos centavos é a má qualidade desses serviços. Não só o dos ônibus em si – que em algumas cidades vêm melhorando pouco a pouco, longe ainda do satisfatório –, mas aquele resultante do quadro mais geral da mobilidade coletiva gerada por esse modelo que privilegia o transporte individual.
O sistema de ônibus, ainda que dotado de BRTs e BRSs, tem seu funcionamento comprometido pelo vertiginoso crescimento da frota automobilística, subsidiado pelo governo federal há vários anos sem contrapartida nenhuma. Engarrafamentos dantescos são a marca de qualquer cidade brasileira. São Paulo então…
O “x” da questão: a prioridade ao transporte individual
Se as verbas dos subsídios à indústria automobilística, das obras rodoviaristas ou de projetos tipo trem-bala fossem investidas no transporte de massas (metrô e trem) ou nos ônibus de alta capacidade (BRT), no subutilizadíssimo transporte hidroviário, nas ciclovias e na disponibilização massiva de bicicletas (estas sim potencialmente gratuitas, pois financiadas pela publicidade), teríamos uma melhoria substancial na mobilidade urbana das nossas cidades. Investimentos em melhorias operacionais em sistemas de bilhete único combinando vários modais de transporte, bem como uma informação em tempo real ao usuário, também ajudariam um bocado.
Por isso, será indispensável – e inevitável em algum momento futuro – a radicalidade de se colocar limites claros ao transporte individual motorizado com a introdução de pedágios urbanos eletrônicos na forma de taxas de congestionamento. O acesso em transporte individual a áreas congestionadas precisa ser taxado levando em conta o padrão do veículo, seu consumo de combustível e a intensidade de suas emissões.
Uma contestação de fato radical ao nosso falido sistema de mobilidade urbana socialmente injusto e ambientalmente insustentável precisaria tomar como centro esta ordem de questões. No entanto, a condução inconsequente desse movimento por parte de grupos de extrema-esquerda de perspectiva jurássica – conquanto mantenham ar juvenil – faz dele algo fadado a não ir além dos efeitos daqueles quebra-quebras de bondes do tempo do Juscelino e de quantos outros sucederam: um jogo de soma zero.
A violência e o despreparo policial
As manifestações, para além de uma juventude justamente revoltada com a má qualidade dos transportes, vem atraindo um certo número de “rebelados sem causa”, punks e outros que tais que pouco se lixam para o preço das passagens de ônibus, mas querem queimar sua adrenalina quebrando o pau com a polícia, depredando bancas de jornais e vitrines capitalistas. Seu afã é plenamente correspondido pela brutalidade e pelo despreparo policial para bater e apanhar.
Não faço aqui da brutalidade da PM de São Paulo, na manifestação de quinta-feira (no Rio, não houve uma repressão indiscriminada), o “aspecto principal” das minhas considerações, até porque minha influência sobre o aparelho policial paulista é próxima de zero.
Minha influência sobre ativistas da causa de melhores transportes, socialmente mais justos e ambientalmente mais sustentáveis, conquanto muito pequena, certamente é um pouco maior. Por isso dedico mais espaço aos “nossos” erros que a brutalidade da policia paulista. Aliás, amplamente denunciada pela imprensa.
É preciso pressionar particularmente o governador de São Paulo, Geraldo Alkimin, para que a PM cesse a agressão indiscriminada e, particularmente, o uso generalizado de balas de borracha. Seu emprego deve ser altamente seletivo pois podem cegar ou matar e vêm sendo ultilizadas de forma irresponsável e criminosa atingindo manifestantes pacíficos, jornalistas e fotógrafos.
Resumo da ópera: uma série de manifestações sem intenção de violência – mas também sem a garantia de um serviço de ordem capaz de protegê-las dos vândalos e provocadores – passou a ser frequentada pelos ditos cujos (os “rebelados sem causa”), que pela sua ação desviaram o tema da discussão dos transportes para a porrada.
Os vândalos atraíram para o movimento a repressão policial. Inicialmente ela teve uma intensidade moderada, mas na quinta feira – aparentemente por causa da repercussão do quase linchamento de um PM em frente ao TJ, na passeata anterior e de um certo tom da TV – parte do dispositivo policial paulista promoveu uma repressão feroz e generalizada.
Uma explosão em mais larga escala, como se prenuncia, só trará mais sofrimento às pessoas, nenhuma melhoria. Quem convoca manifestações tem obrigação de organizar também um “serviço de ordem” para garantir que não desbordem. Não adianta depois pretender que “não podemos controlar o povo”.
Há grupos que aproveitam as manifestações para praticar a violência porque gostam de fazê-lo. Se ela continuar a se expandir exponencialmente, daqui a pouco vamos ter o PCC aproveitando para se infiltrar nos distúrbios e passar a alvejar os policiais. Seria da lógica recente deles fazê-lo…
Por isso devemos tentar acalmar os ânimos e propor formas de luta que não conduzam ao agravamento dos confrontos pois deles nada de bom advirá.
Mais conteúdo e consequência à mobilização
Precisamos de uma crítica sistêmica e não de uma reivindicação que cheire a “boca livre” estudantil. A tradição da luta por “meia passagem” é, nesse sentido, negativa porque esse tipo de subsídio deve se destinar a gente pobre que de fato necessite e não a jovens de classe média ou bem de vida.
A crítica deve ser sistêmica ao modelo de transportes. Não vamos sofismar. “Movimento Passe Livre”, que é a marca paulista do movimento, quer dizer gratuidade, e isso é uma balela. A tarifa de transporte coletivo sempre será paga pela população de uma ou outra maneira, por tarifa ou imposto.
Alguns pontos que o movimento poderia reivindicar:
1 – Ampliação do prazo dos bilhetes únicos intermodais e criação de um vale-transporte para trabalhadores da economia informal em certas condições e contrapartidas;
2 – Levantamento e divulgação de planilhas das empresas de ônibus;
3 – Uma campanha pela internet dando “notas” a cada ônibus, cada rota e cada empresa;
4 – Ouvidoria para os serviços de ônibus, com monitoramento em tempo real e possibilidade de intervenção rápida (um motorista que cometa uma barbaridade no trânsito poderá ser imediatamente identificado e sancionado no ponto final);
5 – Ampliação substancial dos sistemas cicloviários (particularmente em SP, onde há muito poucos e eles são desconexos) e da oferta gratuita de bicicletas pagas pela publicidade;
6 – Implantação da ‘taxa de congestionamento’ mediante um pedágio urbano eletrônico, precificado também em relação ao padrão do veículo e suas emissões;
7 – Fim de subsídios à indústria automobilística, mantendo-os apenas para veículos elétricos e híbridos (como álcool-eletricidade).
Convém também modificar as formas de luta, que deveriam ser minimamente inovadoras, diferentes. Passeatas em horário de rush, em área central, sem planejamento nem serviço de ordem organizado são um convite aos vândalos que descaracterizam o movimento.
A passeata com quebra-quebra e dano objetivo à população é algo jurássico, pouco didático e será certamente contra-producente salvo para os que acreditam em violência como caminho, no quanto pior, melhor.
Melhor seriam grandes bicicleatas com alegorias, em horários mais apropriados ou no final de semana e ações simbólicas “marcando” tapumes de obras rodoviaristas com seu custo comparativo (“esse viaduto vale tantos vagões de metrô”) e outras formas alternativas de protesto e pressão.
É preciso fazer algo diferente em relação ao que já se fez trocentas vezes e nunca surtiu efeito algum para prover nossas cidades de um transporte de melhor qualidade, socialmente mais justo e ambientalmente mais equilibrado.
Por isso devemos tentar acalmar os ânimos e propor formas de luta que não conduzam ao agravamento ainda maior dos confrontos, pois deles nada de bom advirá. Quando falamos apenas para nós mesmos, não percebemos exatamente como a população reage. Anteontem andei pelo Centro do Rio e percebi uma certa hostilidade da população contra esse movimento, que, no Rio, aliás, é bem menos numeroso e com menos episódios violentos que em SP.
Sinceramente, duvido que neste momento a maioria dos paulistas responsabilize o Alckmin ou o Haddad – que assumiu faz pouco tempo – pelo engarrafamento monstro ou pelas lufadas de gás que padece na volta do trabalho. Tende mais a culpar “os baderneiros” igualando assim os que protestam em torno de questões justas com os que surfam o protesto para promover quebra-quebras.
Independente de gostar ou não dos governantes, o povo odeia “bagunça”. Quem não percebe isso pode fazer política grupuscular mas dificilmente estabelece uma interlocução com segmentos maiores, como pareceria ser nossa intenção na Rede.
O grande perigo é sempre se isolar da população. Esta, na verdade, pagaria de bom grado vinte centavos a mais se o serviço tivesse um mínimo de qualidade. O que precisa ser questionado é o sistema de mobilidade que não depende apenas das corruptoras empresas de ônibus, mas de todo um modelo de total prioridade ao transporte individual onde o automóvel reina soberano e atrai a parte do leão dos investimentos.
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