Qualquer aluno do ensino médio de hoje sabe quem foi Platão: o discípulo de Sócrates, o escritor de diálogos como A República, o filósofo idealista que acreditava num tal de mundo as ideias, o tímido solitário que não pegava ninguém e que, por isso, inventou o amor platônico (brincadeirinha). Mas, se você quer ir além desse conhecimento pra lá de introdutório, sugiro a leitura do recém-lançado Platão, o primeiro compêndio escrito originalmente em língua portuguesa dedicado à vida e à obra do fundador da Academia.
Os organizadores do livro são dois professores do Programa de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília (UnB): meu antigo colega de coluna aqui no Congresso em Foco, Gabriele Cornelli, ex-presidente da International Plato Society, e Rodolfo Lopes, tradutor de dois diálogos platônicos – Timeu e Crítias. Para esse compêndio, eles contaram com a colaboração de alguns dos mais importantes estudiosos da obra platônica da atualidade, como o franco-canadense Luc Brisson, o inglês Tom Robinson e o italiano Mario Vegetti (recentemente falecido).
Para Gabriele Cornelli, Platão ainda hoje nos serve como fonte de inspiração. Ele lembra que o filósofo grego foi alguém que se deixou questionar pela política e pela cultura do próprio tempo em um momento muito difícil de Atenas – marcado pela morte Sócrates, seu mestre, devido a perseguições políticas. Ao mesmo tempo, Platão procurava quebrar o véu da aparência imediata para compreender o mundo e as relações humanas da forma mais estável possível.
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“Sem se desvencilhar da realidade, ele buscava algum tipo de entendimento daquilo que acontece, mas que não é a solução imediata, a resposta pronta.”, analisa Cornelli.
Estado da arte
O livro, que faz parte da coleção Coimbra Companions, se propõe a estabelecer um panorama do estado atual das pesquisas sobre Platão. Naturalmente, autores da Antiguidade nos colocam uma série de problemas de cunho factual e hermenêutico advindos da própria distância temporal, da disponibilidade e da confiabilidade de fontes de informação. No caso de Platão, a despeito de tudo isso, temos a sorte de ter recebido quase intactos os textos de 27 diálogos (e mais alguns que a tradição apontava como sendo de sua autoria, mas que hoje são considerados como suspeitos ou apócrifos).
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Entre as questões que mobilizam os platonistas atuais, encontra-se, por exemplo, a controvérsia sobre as chamadas doutrinas não-escritas: para alguns especialistas, parte importante do pensamento de Platão não seria expressa nos diálogos, mas apenas ensinada aos seus discípulos da Academia. Outro problema refere-se às diversas tentativas de se estabelecer uma ordem temporal da produção dos textos – da qual resulta a famosa classificação em três períodos: socrático ou de juventude, intermediário e de maturidade. Os defensores de ambas as posições são objeto de críticas contundentes no livro.
Contexto filosófico
A compreensão do pensamento platônico não pode prescindir do entendimento de sua relação com seus antecessores e contemporâneos. Desse ponto de vista, a teoria das ideias, por exemplo, surge como uma tentativa de superar tanto o imobilismo do ser de Parmênides quanto o “tudo flui” de Heráclito. Enquanto incorporava algumas das noções centrais das doutrinas pitagóricas – como a afirmação da imortalidade da alma – Platão rejeitava fortemente a prática dos sofistas e a sua relativização da verdade. Assim, três capítulos do compêndio são dedicados a esses temas.
Sobre a filosofia platônica em si, o livro nos dá uma amostra da sua inigualável abrangência e fecundidade, ao qual a tirada de Alfred Whitehead faz jus: “a mais segura caracterização da tradição filosófica europeia é a de que essa consiste em uma série de notas de rodapé a Platão”, escreveu certa vez o filósofo britânico. Basta uma olhada nos temas de alguns capítulos do livro para constatá-lo: linguagem, epistemologia, matemática, psicologia, ética e política, medicina, poética, dentre outros.
O compêndio Platão é uma edição conjunta da Imprensa da Universidade de Coimbra (Portugal) e da Editora Paulus (Brasil). A versão física do livro está disponível nas livrarias, enquanto a versão digital pode ser acessada livremente neste link.
Do mesmo autor:
> Dias de Proust no café da manhã
> Marco da filosofia brasileira completa 160 anos (e ninguém se importa)
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