Após a crise que afetou a saúde pública, a economia e os costumes, manteremos a mesma sociedade de antes? Continuaremos consumindo mais e mais, indiferentes à destruição ambiental e à exclusão social? O individualismo e a competição (velada ou explícita) entre sujeitos se manterá? É este o futuro que queremos para nós e nossos filhos? Ou aproveitaremos a tragédia para redefinirmos rumos? Teremos sensibilidade para perceber que a pandemia não foi apenas um susto, mas um alerta?
Como será o mundo pós-pandemia? No curto prazo, o mesmo de sempre. É ilusão sonhar que o país será outro no imediato pós vírus. As medidas econômicas emergenciais – redução de juros, suspensão de obrigações fiscais, reposição de renda mínima, etc. dificilmente serão incorporadas como políticas de Estado. Terminada a pandemia, serão esquecidas. O debate político continuará confrontando o liberalismo versus estado do bem-estar social. De um lado, a ortodoxia neoliberal. De outro, os keynesianos e social-democratas. Os partidos políticos brasileiros seguirão encerrados dentro desses dois tradicionais projetos. No horizonte visível, o trauma da pandemia não teve fôlego suficiente para trazer à tona novidades político-partidárias.
Mudanças comportamentais não terão retorno: menos deslocamentos e contatos pessoais, digitalização da vida, home-office, lives, aulas, consultas médicas, academia e compras via internet. Em poucas palavras: robotização da vida. Nestes aspectos, o vírus só impulsionou as mudanças, antecipou o futuro porque os novos hábitos já estavam a caminho.
No médio e longo prazo, entretanto, podemos esperar mudanças. O isolamento social provocou traumas consideráveis porque restringiu a liberdade: nos obrigou a tirar o pé do acelerador, forçou a suspensão da vida, desorganizou as rotinas. Paralisou a indústria, comércio, e serviços públicos. No mundo, fronteiras fechadas, voos proibidos, hotéis lacrados. Em todo lugar, aulas suspensas, filhos em casa. Internamente, em cada país, transportes intermunicipais e interestaduais suspensos, cinemas, bares, restaurantes, salões de beleza e academias proibidas. A liberdade sumiu e produziu efeitos: impaciência, frustração e muita melancolia.
O isolamento mexeu com a psique individual e coletiva. Induziu sujeitos e comunidades a refletirem a respeito da vida e da sociedade. Dentro de circunstâncias e possibilidades particulares, cada um fez a sua revisão de necessidades e prioridades. A pandemia aflorou a percepção dos desatinos sociais e ambientais, do individualismo, ausência de solidariedade, da exclusão social, do esgotamento da democracia representativa. Os imaginários se impregnaram da urgência de mudanças. A pandemia abriu mentes, deixou evidente que precisamos escolher melhor o modelo de desenvolvimento que queremos. Pela primeira vez, com intensidade pratica e reflexiva, a sociedade se deu conta que é possível melhorar a qualidade da vida sem necessariamente crescer, que a felicidade e o bem viver não dependem de produzir e consumir mais.
Como disse alguém, ter mais está se tornando um valor abstrato. Viver sem o automóvel é possível, talvez até melhor. Estamos constatando na prática que crescer sempre e produzir mais pode não ser a meta da sociedade como foi até aqui, pois o preço a pagar parece ser maior que os benefícios. Estamos nos dando conta que guardar dinheiro em banco ou comprar um carro novo são de pouca validade quando pouco uso podemos fazer deles.
A dor mexeu com nossos afetos. Não devemos enobrecer desastres, mas podemos valorizar as respostas que daremos a eles. A visibilidade da morte despertou uma consciência maior a respeito das prioridades da vida. É triste constatar que o altruísmo veio embrulhado em um pacote de tristezas, como disse Rebecca Solnit. Mas é evidente que a crença em um mundo melhor se consolida como um efeito da pandemia.
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Demonstrações de espontânea solidariedade surgiram em toda parte. Estados nacionais adversários foram solidários uns com outros. Socorros emergenciais voluntários apareceram em todos os níveis. O trabalho de médicos e enfermeiros passou merecer um afeto que nunca antes teve. Vizinhos passaram a comprar no pequeno comercio local a fim de socorrê-lo da falência. E assim por diante.
Não foi a pandemia que colocou em pauta a discussão das prioridades. Os modelos vigentes deram há tempos sinal de esgotamento. Sucessivas crises sociais e ambientais estão desde há muito na agenda da sociedade, parlamentos, mídia e universidades. Alternativas abundam: o projeto Bem Viver no Equador, a economia de Francisco, o decrescimento feliz, novas matrizes energéticas, agro ecologia sustentável, etc.
Posso estar equivocado, mas penso que o projeto de uma nova sociedade, qualquer que ele vier a ser, parece mais consensual hoje que antes. Mais compensador ainda é se dar conta que o enredo que está brotando não repete as narrativas utópicas clássicas. Indicam a construção de algo que virá sobre a marcha dos acontecimentos, sem copiar nenhum modelo. Será construído ao caminhar. Falta de recursos não há. O que falta, como disse o economista Ladislau Dowbor, é vontade de justiça, ética e bom senso econômico.
No campo do imaginário, o novo normal não será como antes. A gradual mudança de mentalidade coletiva, a meu ver, será o principal ganho no pós pandemia. O mundo seguirá ambíguo e contraditório, não eliminará de imediato as contradições sociais. Uma nova sociedade não surgirá num passe de mágica. Entretanto, respostas às crises são sempre criativas e inovadoras. O ano de 2020 não será um ano perdido. Talvez seja o prenuncio da virada. Haverá, como sempre, quem puxe para trás. Com certeza, porém, aumentarão os que sonham.