Um projeto que limita a cobrança de juros do cartão de crédito e do cheque especial tem provocado turbulência no Senado. De um lado, um grupo de senadores argumenta que a crise causada pela pandemia obriga o setor financeiro a dar sua cota de sacrifício para ajudar a parcela da população mais afetada pela crise econômica. Do outro, parlamentares que enxergam na proposta uma interferência indevida do Legislativo no mercado. Entre eles, o presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), pressionado por ambas as partes, e os bancos, que tentam convencer os senadores a sepultar a iniciativa.
A polêmica gira em torno do Projeto de Lei 1.166/2020, apresentado pelo líder do Podemos no Senado, Alvaro Dias (PR), que limita a 20% ao ano os juros cobrados sobre dívidas contraídas entre março de 2020 e julho de 2021. O relator, senador Lasier Martins (Podemos-RS), avalizou a proposta, mas elevou o teto para 30%. O texto estava na pauta do dia 14 de maio. Mas foi retirado em cima da hora por Davi Alcolumbre, que alegou que não havia consenso para a votação. O senador abriu novo prazo para emendas e, por enquanto, não há sinal de que a proposição voltará ao plenário.
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O projeto reduz drasticamente os juros cobrados pelas instituições financeiras. Segundo o Banco Central, o juro médio do cheque especial ficou em 130% ao ano para pessoas físicas em março. No caso do cartão de crédito, a taxa média do rotativo regular (quando há pelo menos o pagamento da fatura mínima) ficou em 296,1% ao ano.
Sob pressão
A medida tem, entre seus principais críticos, outro senador do Podemos, Oriovisto Guimarães, também do Paraná, a exemplo de Alvaro Dias. “Absolutamente não é aceitável. Isso é fazer benesse com chapéu alheio. Agrada muito a população no primeiro momento. É populista”, critica Oriovisto.
PublicidadeJá o autor e o relator da proposta afirmam que o texto saiu de pauta devido à pressão dos bancos. “A pressão dos bancos é violenta. Eu mesmo cansei de atender a telefonema da Febraban (Federação Brasileira dos Bancos] e do Banco Central. Estão fazendo de tudo para não deixar o projeto passar. Acho que o Davi Alcolumbre está se curvando. Querem jogar essa proposta para as calendas gregas. Querem sumir com o projeto”, disse Lasier ao Congresso em Foco.
“Os bancos, inclusive o BC, continuam pressionando. Estou à espera da próxima reunião de líderes [marcada para a próxima segunda-feira] para pedir uma definição”, afirmou Alvaro Dias. O senador conta que evitou contato com representantes do Banco Central, que pretendiam convencê-lo a desistir da proposta. “Eles do BC têm líderes do governo para essa discussão e apresentação de propostas alternativas”, ressaltou.
Davi e Maia
Procurado pela reportagem, o Banco Central informou que não se manifesta a respeito de projetos em tramitação no Congresso. Em nota (veja a íntegra mais abaixo), a Febraban confirmou que procurou Davi Alcolumbre e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para mostrar sua preocupação com o projeto.
Segundo a federação, a proposta pode “produzir, sob a ótica da oferta, da demanda e da formação de preços, efeitos econômicos negativos e insegurança jurídica com enorme potencial de gerar dano à imagem do país, ao ambiente de negócios e ao apetite por investimentos”. A entidade afirma, ainda, que os bancos estão “sensíveis” à situação do país e que vão continuar a adotar “ações para dar alívio financeiro a milhões de brasileiros”.
Os bancos também se preocupam com outro projeto no Senado, o que aumente a alíquota da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) das instituições financeiras de 20% para 50%. O texto, de autoria do senador Weverton Rocha (PDT-MA), também foi retirado de pauta.
Mudança temporária
Além de elevar o teto dos juros, Lasier Martins reduziu o período de vigência da nova regra, trazendo de julho de 2021 para 31 de dezembro de 2020, quando vence o estado de calamidade pública decretado em decorrência da pandemia.
“É importante frisar que é uma medida excepcional e temporária”, destaca o relator, que acolheu cerca de 20 das 50 emendas apresentadas ao texto. “Não queremos afetar a liberdade de mercado. Estamos procurando neste momento aflitivo da pandemia socorrer essa gente que se endividou com cartão e cheque especial e que, se não pagarem até o vencimento, vão cair no parcelamento rotativo de 150% a 300% ao ano”, explica.
Para Alvaro Dias, o projeto não causará prejuízos aos bancos. “Reduz a margem de lucro, hoje exorbitante e desumana. Sem prejuízo. Não se trata de tabelamento. Trata-se de limite para combater a usura”, ressalta o senador paranaense. “Diversos Bancos Centrais têm esse controle. Tanto é que usam essa informação para estabelecer limites para as taxas. No Brasil falta vontade ao Banco Central, que quer manter a total liberdade para os bancos”, acrescenta.
>Bancos pressionam Senado e redução de juros sobre cartões deverá ser menor
Divergência de aliados
Um dos principais críticos do projeto no Senado, Oriovisto Guimarães reconhece que os juros praticados no Brasil são muito elevados. Mas considera que não é papel do Congresso interferir no assunto. “Não é matéria para o poder Legislativo legislar. Se tivesse de haver interferência, teria de ser do Banco Central. O BC já limita hoje o cheque especial, tem limite fixado que pode aumentar ou baixar, hoje é de 151%. É altíssimo, mas quem fixou foi o BC”, diz.
Oriovisto alega que o projeto confunde financiamento com o serviço do cartão de crédito. “Não dá para comparar as duas coisas. Quando o sujeito parcela e não paga, ele está sendo punido por ter sido mau pagador. Ele precisa é de educação financeira. Se fizerem isso [limitar os juros], os bancos vão cortar essa operação. Vão dar só para o cliente que sabe que vai pagar”, afirma. “É uma proposta vazia. Não há embasamento técnico. De onde tiraram que o limite tem de ser 20% ou 35%?”, questiona.
Segundo Alvaro Dias, o percentual foi estabelecido com base na taxa Selic (na data da elaboração do PL estava 3,75% ao ano). “Um critério que muitos países do mundo aplicam. A Selic é a base para o cálculo de remuneração de investimentos que o banco recebe, como poupança. 20% ao ano equivalia, no momento da elaboração do PL, a 5,3 vezes o percentual da Selic. Percentual bem superior ao que o banco paga na captação de recursos. Com esse percentual de 20% ao ano, os bancos teriam uma margem ampla para cobrir custos e inadimplência, comparando com o que eles pagam na captação de recursos, que é sempre próximo à Selic”, justifica o senador.
O ex-candidato a presidente pelo Podemos reclama que os bancos não apresentam planilhas de custos do cartão de crédito, o que, de acordo com ele, é necessário para indicar a real margem de lucro auferido. “A contabilidade de custos nesse setor serviria para demonstrar o que seria ou não razoável como taxa de juros. O BC certamente sabe isso. Mas não se manifesta de maneira clara. Diversos Bancos Centrais têm esse controle. Tanto é que usam essa informação para estabelecer limites para as taxas”, ressalta o autor da proposta.
Donos do dinheiro
Para o economista e cientista político Ricardo de João Braga, o mercado bancário brasileiro tem duas características fundamentais que o distingue de seus congêneres em outros países: a grande concentração em poucas instituições e a lucratividade muito acima da média mundial. Esses dois fatores, observa, refletem-se na cobrança de elevadas taxas de juros.
“O limite de juros foi sempre um assunto popular porque a questão da usura, da cobrança de juros, vem desde a Idade Média. É um tema muito popular porque o povo sempre se vê oprimido pelos donos do dinheiro, ainda mais em um país como o Brasil, onde as pessoas têm uma renda muito baixa”, explica Ricardo, que também é analista político do Farol Político, produto Premium do Congresso em Foco voltado para assinantes.
“O povo se vê sempre diante de uma situação escorchante de cobrança de juros. De um lado, a população está em situação econômica difícil. Quem precisa e tiver acesso vai recorrer ao crédito. Por outro lado, os bancos vão dizer que não são instituição de caridade e que necessitam ter uma sustentabilidade financeira. É um negócio privado, no fim das contas, vão dizer que têm acionistas que precisam ser remunerados pelo dinheiro que investem.”
Ricardo avalia que as instituições financeiras estão entre os grupos de pressão mais organizados politicamente do país. “Os bancos conseguiram até mudar o artigo 192 da Constituição Federal, que limitava os juros a 12% ao ano. Ele não chegou sequer a ser implementado. A Justiça disse que que precisava de uma lei complementar, até que tiraram esse limite. A Constituição falava em limite de juros. Hoje não fala mais”, lembra. Para ele, dificilmente a limitação dos juros se tornará lei. “Certamente quem vai ganhar são os bancos. Eles nunca perdem”, ressalta.
Veja a íntegra da nota da Febraban:
“A Febraban, representando seus associados em todas as esferas – Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário –, mantém conversas permanentes com as autoridades constituídas. A Febraban, com o único propósito de contribuir para o contínuo aperfeiçoamento do sistema normativo, a evolução dos serviços financeiros e a redução dos níveis de risco, externou pessoalmente aos Presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, a preocupação do setor com propostas legislativas que, se aprovadas, poderão produzir, sob a ótica da oferta, da demanda e da formação de preços, efeitos econômicos negativos e insegurança jurídica com enorme potencial de gerar dano à imagem do país, ao ambiente de negócios e ao apetite por investimentos.
Além disso, informou que os bancos, atentos e sensíveis ao momento que estamos atravessando e, cientes de que a crise econômica será mais longa do que inicialmente se previa, continuarão, espontaneamente, a adotar ações para dar alívio financeiro a milhões de brasileiros.
Portanto, a Febraban, de forma institucional e respeitosa, fez ponderações aos Presidentes da Câmara e do Senado, apontando a disposição de seus bancos associados, cada qual seguindo suas condições, políticas de preços e de negócios, em ampliar medidas de alívio financeiro, o que vem sendo feito independentemente da tramitação de matérias legislativas.”
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