José Sant’Anna e André Sathler Guimarães *
André Lara Resende surpreendeu alguns de seus pares ao propor uma mudança nos termos da discussão sobre política macroeconômica. Como sói de acontecer nessas situações, alguns, como Edmar Bacha, preferiram menosprezar as pessoas portadoras das novas ideias, ao invés de se ater aos argumentos apresentados. Lara Resende chamou a atenção para o papel da dívida pública e a sistemática de seu tratamento pelas autoridades monetárias. A heterodoxia aponta os impostos e a emissão de títulos (dívida), como métodos preferenciais para o financiamento do gasto público. Baseado no que vem sendo chamado de Moderna Teoria Monetária, ele advoga que a simples emissão de moeda pelos governos, que têm autoridade para tanto, pode ser uma solução para o financiamento do gasto público dada a especificidade de determinados contextos.
A mera sugestão de algo semelhante provoca arrepios na ortodoxia e, não fosse André Lara Resende um economista respeitado pelo mainstream, provavelmente seus artigos não teriam conseguido abrir espaço na mídia para serem publicados. As metas de inflação tornaram-se uma das pernas do chamado tripé econômico, e as taxas de juros devem ser fixadas de forma consistente com a manutenção de um nível de preços estável. Ocorre que é importante prestar a atenção ao predicativo “dada a especificidade de determinados contextos”. Keynes chegou a aventar que os governos contratassem a abertura de buracos apenas para em seguida contratarem o fechamento dos mesmos buracos, como metáfora explicativa de sua ideia força relativa ao papel da demanda na economia. Por quê não criar moeda a partir do nada? (abrir alguns buracos, ainda que seja para fechá-los mais tarde).
Há aqui um deslocamento da ênfase da política monetária para a política fiscal. O governo continuará monitorando o nível de atividade e a inflação, retirando ou adicionando moeda ao sistema por meio da flutuação nos impostos ou mesmo da emissão de títulos. Não se defende a irresponsabilidade fiscal. André Lara Resende ressalta veemente a restrição da realidade, como fator impeditivo à loucura dos soberanos. Não se trata de advogar a gastança generalizada, uma vez que não haveria, a priori, restrições financeiras ao governo – que poderia seguir emitindo moeda sem restrições. Trata-se sim de entender que a restrição financeira de governos soberanos monetariamente é flexível. O aumento da moeda encontra sua contrapartida na capacidade produtiva da economia. O gasto do governo vai impactar a demanda e, a partir de determinado momento, poderá ser um fator inflacionário. Real, porque decorrente da sobrecarga no setor produtivo, e não da expansão monetária.
Os temas discutidos por André Lara Resende são muito amplos e exigem esforços explicativos que transcendem um artigo de opinião. Entretanto, a lógica é simples e pode ser facilmente compreendida. Dado o “momento específico” de altíssima ociosidade, mercado de emprego em frangalhos, baixo crescimento, a paranoia da reforma da previdência como panaceia é totalmente inadequada. Simplesmente por ser um elemento a mais a complicar o problema – retirar recursos (moeda) da economia. Nesses “contextos específicos”, a emissão de moeda pode ser uma medida efetiva de indução do crescimento. Sua argumentação é recheada de exemplos recentes, como o comportamento dos bancos centrais e suas respectivas economias nacionais no pós-crise de 2008.
A reforma da Previdência dá fortes sinais de que não será aprovada, sobretudo diante do acirramento da tensão entre os chefes dos poderes Executivo e Legislativo. Os que com ela são paranoicos correm o risco de se verem sem alternativa, lançados ao léu por conta da inabilidade política e da incapacidade técnica do presente governo em fazer andar a sua agenda. A deterioração da situação econômica encontra-se apenas um passo adiante. Não seria o momento de a ortodoxia abrir um pouco o diálogo com outras possibilidades e potencialidades?
PublicidadeFoi Margaret Thatcher que propôs o argumento TINA (acrônimo para não há alternativa, em inglês) como prova objetiva, quiçá científica, de que a ortodoxia era o único caminho possível. Também para evitar controvérsias e forçar sua agenda liberalizante e privatizante. Lembramos aqui do poeta Fernando Pessoa: “um país tem que governar-se com contabilidade; não pode governar-se por contabilidade”. Também é do poeta a reflexão de que a “a alma humana é irredutível a um sistema de deve e haver”. A concepção mais moderna de finanças públicas as enxerga como como parte do processo econômico, intrinsecamente histórico, dinâmico, complexo e não-determinístico, de desenvolvimento das sociedades modernas. Com certeza, há soluções melhores para a atual situação fiscal do país do que a proposta de reforma apresentada.
* José Sant’Anna é assessor econômico da Liderança do PSB.
* André Rehbein Sathler Guimarães é professor do Mestrado Profissional em Poder Legislativo, assessor Econômico da Liderança do PSB e membro do Comitê Gestor do INCT-DD.
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