José Serra*
A pandemia do novo coronavírus, uma catástrofe humanitária internacional, condenará milhões de pessoas ao desemprego. São tempos difíceis que impõem custos altos à sociedade. O Estado é responsável por dar respostas às crises sanitária e econômica. Nesse cenário, será necessário aperfeiçoar a rede de proteção social no País para que os objetivos do art. 3º da Constituição – solidariedade, desenvolvimento nacional e redução da desigualdade social – sejam cumpridos.
Com o número de mortos aumentando, obrigando as pessoas a se manterem isoladas, o Brasil atravessa um dos momentos mais difíceis e tristes da sua história. A inevitável paralisação de atividades econômicas provoca gigantesca onda de demissões, que exige intervenção do Governo Federal para salvar vidas e empresas. Uma das medidas é o auxílio emergencial de R$ 600 que deverá ser pago a cerca de 70 milhões de brasileiros.
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Com essa cobertura cria-se um cadastro social importante que permite o aperfeiçoamento da atual rede de proteção social, que se espelha na proposta conhecida como “renda mínima universal”, adotada em diversos países como um amplo seguro social. A ideia não é nova. Foi proposta por Thomas More, no século XVI, na sua obra Utopia, uma ilha imaginária, onde os cidadãos recebiam uma renda básica. No pós-guerra, o Reino Unido implementou a proposta, com limitações. Mais tarde, nos anos 1980, a ideia se expandiu por toda a Europa. Nas décadas de 1960 e 1970, os EUA e o Canadá iniciaram experimentos de tributação negativa da renda (o imposto negativo de Milton Friedman).
No Brasil, os primeiros passos foram dados na década de 1990, com programas de transferência de renda vinculados à educação: os Bolsa Escola. Tiveram a contribuição do então Senador Eduardo Suplicy, em sua incansável defesa na instituição de uma renda básica universal. Em 2004, Suplicy finalmente viu aprovado o seu projeto de renda básica da cidadania, dando origem à Lei 10.835/2004. Com a Lei, os quatro programas de transferência de renda em vigor no País, com foco na erradicação da pobreza extrema, foram unificados em um único: o Bolsa Família.
O Ministério da Economia sugere o fim do auxílio emergencial de forma gradual, estendendo o benefício por mais dois meses e redução do valor para R$ 300. Nessa esteira, apresentei Projeto de Lei 2742/2020, que cria a renda básica de cidadania permanente. No meu PL cabe ao Poder Executivo definir o valor do benefício em montante suficiente para cobrir as despesas básicas com alimentação, educação e saúde. A situação econômica e fiscal impõe um desenho de programa que não perca de vista a responsabilidade fiscal e a boa governança. A LRF exige transparência das fontes de financiamento de despesas obrigatórias de caráter permanente via: elevação de impostos, revisão de despesas e relaxamento das metas fiscais.
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O PL aproveita a experiência do auxílio emergencial para aperfeiçoar a Lei 10.835/2004, com foco na vulnerabilidade social e tornará permanente a implementação de uma renda básica. Um cadastro gigantesco está em formação, dando visibilidade e cidadania a milhões de brasileiros.
Transferências de dinheiro rápidas, com baixo custo administrativo, apesar dos percalços para o pagamento das primeiras parcelas, como é o auxílio emergencial, são uma experiência que possibilitam a estruturação operacional que viabilize a efetivação de um novo programa social no País. A estrutura do Bolsa Família, com sua capilaridade, deve ser o ponto de partida.
Proponho, ainda, que os programas nacionais de transferência de renda (com exceção do BPC e do Seguro-Desemprego) sejam unificados, o que garantirá importante fonte de financiamento para um novo arranjo social. Caberia ainda estabelecer um modelo de governança do novo programa baseado em monitoramento sistemático e permanente do TCU quanto à legalidade e à economicidade na execução do programa, com a participação de outras instituições públicas federais.
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Uma fonte de custeio seria a revogação da isenção do imposto de renda sobre dividendos e lucros distribuídos da pessoa jurídica para a pessoa física criada nos anos de 1990. Essa isenção não foi suficiente para diminuir a evasão fiscal e aumentar investimentos no setor produtivo. No novo arranjo, haveria transferência de recursos dos mais ricos aos mais pobres, com efeito multiplicador sobre o consumo e a atividade econômica. No longo prazo, dado o multiplicador fiscal decorrente, parte do custo seria compensado, retornando aos cofres públicos. Essa tese, defendida em meu PL, foi confirmada em estudo realizado pela UFMG, divulgado em 24/05, cuja a conclusão é que a arrecadação de impostos gerada pelo programa emergencial pode cobrir até 45% dos seus custos, na medida em que estimula o consumo e a geração de emprego.
A pandemia desnudou a precariedade do sistema de proteção social, ceifou empregos, renda e a vida de muitos cidadãos e, da forma mais perversa, tornou “visíveis” milhões de brasileiros que hoje vivem à margem da ordem constitucional vigente.
*José Serra é economista e senador por São Paulo (PSDB). Também foi governador de São Paulo e ministro da Saúde, do Planejamento e das Relações Exteriores.