Em outubro desse ano, a revista americana The Atlantic publicou uma consistente matéria com o título: “A China está silenciosamente reformatando o mundo”. Pouco antes, em maio, o Pentágono, em relatório anual ao Congresso americano alertava: “A China vê os EUA como o ator dominante regional e global com maior potencial para interromper sua ascensão”. Essas, entre outras publicações sobre o dinamismo e pujança da economia chinesa serviram para tirar do armário o macarthismo americano que vê comunista embaixo da cama.
O gatilho das inquietações macarthistas está na iniciativa chinesa “One Belt, One Road” (OBOR, na sigla em inglês), plataforma de colaboração econômica e social da China para a Eurásia que a consultoria McKinsey classificou em 2016 como a maior plataforma para colaboração regional do mundo. De fato, a OBOR prevê investimentos de mais de 1 trilhão de dólares em mais de 60 países. Comparativamente, o Plano Marshall, propulsor do desenvolvimento americano como fiador da Europa no pós-guerra, aplicou cerca de 150 bilhões de dólares, em valores corrigidos de 2017, a maior parte em apenas seis países.
Nesse diapasão, recentemente o senador Marco Rubio, ex-pré-candidato republicano à Presidência e vice-presidente da Comissão Executiva sobre a China do Congresso Americano, questionou o excesso de atenção à influência russa nas eleições dos EUA e a pouca atenção dada à crescente influência chinesa. “Os esforços chineses para influenciar nossas políticas e liberdades básicas estão mais generalizados do que muitas pessoas pensam”, disse.
Na mesma linha, o senador acusou a China de promover diplomacia por meio de contratos “nebulosos” com universidades americanas por meio do Instituto Confúcio. Não apontou quais seriam os aspectos “nebulosos” e ignora, possivelmente de propósito, que o modelo não foi inventado pelo Partido Comunista Chinês, mas é um mecanismo usado pela Alemanha, Espanha e França, por exemplo, por meio do Goethe-Institut, Instituto Cervantes e Alliance Française, respectivamente, na promoção de suas línguas e cultura.
Difundir o conhecimento linguístico é importante para a economia de qualquer país, para suas relações comerciais e culturais. Não é um mecanismo conspiratório. Tanto que o conhecimento da língua inglesa é cobrado anualmente de mais de 9 milhões de estudantes chineses no GaoKao, o “Enem” de lá, juntamente com o mandarim, a língua da etnia Han e dialeto oficial no país com mais de 80 dialetos diferentes.
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No início de dezembro, o National Endowment for Democracy (NED), um think-thank destinado a financiar o modelo de democracia estadunidense e seus interesses, publicou um relatório chamado “Sharp Power”, analisando a influência sino-russa nos países em desenvolvimento. No capítulo sobre a América Latina, a nítida preocupação com a influência chinesa e sua interferência nos interesses americanos no continente – ou quintal, como se pensa por lá. Na região, ao contrário do investimento americano atual, predominantemente financista, a China investiu entre 2010 e 2016 cerca de 295 bilhões de reais.
O investimento chinês está concentrado no desenvolvimento produtivo, como o setor petroleiro e em mineração. Na Venezuela foram 28 bilhões de dólares na Faixa Petrolífera de Orinoco, no Brasil, empresas chinesas adquiriram 40% da espanhola Repsol e 30% da petroleira portuguesa GALP. Recentemente, a chinesa HNA adquiriu a concessão do aeroporto do Galeão (RJ), da Odebrecht, levada à quase insolvência pela Operação Lava Jato. No Peru, o consórcio MMG LTD adquiriu as minas de cobre Las Bambas. Isso tudo porque a América Latina não está contemplada pela OBOR, o que aumentaria ainda mais esses investimentos.
Nesta semana, Josh Rogin, colunista do The Washington Post, vocalizou a grita macarthista e acusou o senador Steve Daines de atuar como lobista chinês, citando um contrato de exportação de carne bovina do estado de Montana para a China no valor de 200 milhões de dólares, intermediado pelo senador. A influência chinesa ocorreria, nas palavras do jornalista, com a cooptação de influenciadores e stake-holders para promover a defesa do regime comunista. O argumento, entretanto, não vale para o lobby de Trump quando promoveu a venda de 300 aviões Boeing a empresas chinesas em sua visita ao país em novembro.
Para o macarthismo americano em versão 2.0, o crescimento e a expansão da influência chinesas são uma ameaça não apenas porque desafiam a supremacia dos interesses americanos, mas porque atualmente os EUA não podem nem querem reagir à crescente influência chinesa. Enquanto a China investe 1 trilhão de dólares na Ásia e na Europa, ironizou o jornalista David Ignatius, do blog PostPartisan, o governo ainda pode aprovar deformas e prosseguir desmontes, ocupa seu tempo protegendo empregos em minas de carvão e questionando a ciência climática.
De fato, os EUA não têm 1 trilhão de dólares para “pagar pra ver” diante do One Belt, One Road chinês, e a estratégia “America first” do presidente Trump está abrindo caminho para a influência de outros players globais, como a China e a Rússia. A retirada dos EUA via decreto do Acordo Transpacífico e a saída do país da Unesco são exemplos de como a política isolacionista dos EUA está abrindo espaço para a atuação de outros países.
O radicalismo ideológico vê esse cenário como uma conspiração chinesa, incapaz de encarar a própria incompetência de repensar o papel dos EUA em um mundo multipolar. Nesse mundo, a China dá sua resposta por meio do financiamento do desenvolvimento e da cooperação econômica, enquanto os EUA se fecham com Trump e os macarthistas 2.0.
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