A crise descortina as mentiras da agenda econômica neoliberal. Em 2017, o então ministro da Fazenda, ao defender a reforma da previdência proposta pelo governo Temer, centrada em cortes de despesas públicas, afirmou textualmente aos senadores:
“Vamos ser claros aqui, o governo não fabrica dinheiro, até mesmo porque isso gera inflação” (Henrique Meirelles, 8 de março de 2017).
A clareza da afirmação não a isentava de contradição: se a fabricação (emissão) de moeda pelo governo causa inflação, como é que o governo não é capaz de emitir dinheiro?
Três anos depois, em meio à paralisia econômica provocada pela necessidade de contenção da pandemia, o agora Secretário de Fazenda do estado de São Paulo se manifestou de forma também transparente, mas diametralmente oposta:
“O Banco Central tem grande espaço de expandir a base monetária, ou seja, imprimir dinheiro, na linguagem mais popular, e, com isso, recompor a economia. Não há risco nenhum de inflação nessa situação“ (Henrique Meirelles, 8 de abril de 2020).
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Evidentemente, o ex-ministro e ex-presidente do Banco Central sabia em 2017 que o Governo Central não só emite como possui o monopólio de criação da base monetária. Também sabia, como sabe hoje, que nem sempre a expansão monetária se traduz em inflação, pois quando ainda atuava como banqueiro central testemunhou a maior injeção de moeda já registrada na história mundial – os mais de US$ 15 trilhões emitidos para salvar o sistema financeiro global após o crash de 2008 –, sem que isso trouxesse alta de preços internacionais.
Num intervalo de tempo menor, o novo ministro da Economia, como o anterior, se contradisse em questões ligadas às finanças públicas. No ano passado, sua justificativa para a redução dos benefícios aos aposentados, congelamento de concursos públicos e de salários, diminuição dos mínimos constitucionais em saúde e educação e aceleração das privatizações, partia de uma suposta constatação:
“Está provado que o governo furou os quatro pneus. O Estado brasileiro quebrou e está com os quatro pneus furados.” (Paulo Guedes, 25 de setembro de 2019).
Na crise atual, no entanto, diante da súbita paralisia da atividade, e mesmo em meio ao colapso previsto da receita pública, o ministro, não sem algum desconforto, revelou que o governo não está quebrado, afinal:
“…num momento em que a economia brasileira precisa de um esforço contracíclico, nós sem espaço fiscal (definido pela meta de primário), ao contrário, teríamos que agudizar a crise contingenciando R$ 40 bilhões…Isso, evidentemente, não é razoável…a saúde dos brasileiros e a defesa dos empregos dos brasileiros está acima de outros interesses…A solução técnica é o art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal (que em caso de calamidade pública suspende) as metas de resultado primário deste ano, então você tem o espaço para fazer o esforço contracíclico.” (Paulo Guedes, 18 de março de 2020).
Ficou claro que a ausência de espaço fiscal para a elevação ou manutenção do volume de despesas públicas não decorre de exigência financeira incontornável a um governo que em tese anda com “os quatro pneus furados”, mas de restrições ao gasto autoimpostas na forma da legislação. Observe-se que a “saída técnica” mencionada pelo ministro foi, em verdade, política: dada a situação sanitária e da economia, não se podia reduzir ainda mais o gasto social, daí a decretação de calamidade e a referência ao art. 65 da LRF.
Já nos casos do teto de gastos e da “regra de ouro”, as outras limitações autoimpostas às despesas de investimento e sociais do Governo Central, as soluções passaram pela elaboração de créditos extraordinários não incluídos no teto e pela alteração transitória da própria “regra de ouro” via PEC 10/2020.
Reféns das ficções neoliberais
Livre, ao menos temporariamente, de amarras fiscais disfuncionais, o governo central brasileiro reluta em defender a saúde, o emprego e a renda da população numa economia onde o setor de serviços – que concentra as atividades mais afetadas pela crise, como o comércio, educação, turismo, transporte aéreo e rodoviário, restaurantes, bares, eventos culturais etc. – responde por cerca de 3/4 do total produzido.
Depois da subtração de recursos do orçamento da saúde entre 2017 e 2020 por força do teto de gastos, os primeiros aumentos de dotações anunciados em março deste ano tratavam tão somente de remanejamento na pasta. O diferimento do pagamento de impostos e a antecipação de parcelas do décimo terceiro do INSS não representaram nem alívio de obrigações, que pressionarão mais adiante os orçamentos familiares, nem injeção adicional de renda na economia este ano.
No primeiro rascunho de medidas em defesa do emprego formal, a MP 927/2020, desenhada pelo Ministério da Economia após consulta a empresários, permitia a dispensa de empregados para capacitação por até 4 meses sem recebimento de salários, o que nem chegou a ser analisado no Congresso Nacional.
Na sequência, a MP 936/2020, desta feita aprovada, autorizou, mediante acordo individual, a redução de até 70% de jornada e salário ou a suspensão do contrato de trabalho por até 60 dias, incluindo como contrapartida o acesso do trabalhador ao seguro desemprego. Para os trabalhadores sem carteira e com renda familiar per capita até meio salário mínimo, o Ministério da Economia inicialmente propôs a criação de voucher de R$ 200,00 por família, valor irrisório elevado para o piso de R$ 600,00 pelo Congresso.
A timidez da atuação do governo federal na crise também vem repercutindo na negociação do auxílio a estados e municípios, atingidos pelo declínio das receitas próprias de ICMS, ISS e outros impostos, mas que diferentemente da União não emitem moeda nem possuem capacidade ampliada de endividamento.Depois de insistir na aprovação do PLP n. 159/2019, um programa de ajuste das finanças federativas assentado em parâmetros que deixaram de existir com a crise, o Executivo Federal vem resistindo aos Substitutivos propostos no Congresso que mesclam suspensão temporária do pagamento das dívidas com ampliação dos repasses da União a um custo menor em termos de contrapartida.
“Não tem dinheiro para tudo isso. Vão ficar querendo que o contribuinte pague esta conta até quando?” (Jair Bolsonaro, 18 de abril de 2020).
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Somente em uma frente de defesa da economia o governo vem mostrando desenvoltura: a do sistema financeiro, e mesmo assim com um grande ausente até o momento, o banco de desenvolvimento brasileiro (BNDES). O apoio aos bancos e investidores começou com aceleração da liberação de R$ 135 bilhões dos depósitos compulsórios no Banco Central, com a compra por bancos públicos de ativos de instituições financeiras em dificuldades e com ampliação da folga de capital dos bancos de forma a acomodar expansão de crédito de R$ 640 bilhões.
Depois disso, com a aprovação da PEC 10/2020, o Banco Central foi autorizado a comprar títulos públicos, privados e direitos creditórios nos mercados secundários de forma a, nesse momento de stress, facilitar a rolagem da dívida pública e preservar a liquidez e o patrimônio dos fundos de investimento.
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Mitigar ou aprofundar a crise?
Não passa de palpite qualquer cenário elaborado em meio ao ineditismo da situação provocada pela interrupção parcial, por período indeterminado, da circulação e produção de bens e serviços, com reflexos negativos no emprego, renda, receitas das empresas e nos mercados financeiros.
O Banco Central do Brasil trabalha com a possibilidade de retração de 5,5% do PIB neste ano. Mas é possível estarmos à beira de um cataclismo econômico sem precedentes: assumindo queda da produção em um mês de 50% e de 25% nos dois subsequentes, o encolhimento anual do PIB chegaria a 10%, isso sem contar os efeitos multiplicadores para baixo da espiral oferta-renda-demanda-oferta.
Não há nenhuma chance de proteger a saúde da população e de amortecer o colapso econômico sem a massiva atuação do Estado. O governo central é o único agente capaz de atuar contra-ciclicamente na crise pois não busca o lucro, cobra impostos, emite moeda, não pode quebrar ou deixar de pagar a própria dívida em moeda local, e define a taxa de juros na qual se endivida.
Se as finanças públicas fossem semelhantes às finanças domésticas, como reza a ficção neoliberal, não seria possível num momento como o atual, de queda de receitas e aumento projetado do déficit e dívida públicas, baixar a taxa Selic para o mínimo histórico, como acabou de fazer o Banco Central do Brasil.
Não há limite estritamente financeiro à expansão do gasto do governo central. As restrições que existem, inflação ou limites à capacidade de importar, não se colocam na situação atual.
A suposta “conta a ser paga pelo contribuinte no futuro” devido ao aumento da dívida pública não é estática nem procede. Não é estática porque se o governo não gastar agora o “contribuinte” entra em falência sem conseguir “pagar” nada hoje ou depois. Não procede porque um governo soberano que emite moeda e define a taxa de juros pode rolá-la a um custo menor do que o do crescimento real do produto, além de poder monetizá-la sem necessariamente gerar inflação.
O governo não deveria se limitar a “fazer o possível” restringido pelas falácias e “outros interesses” neoliberais, mas poderia “fazer o necessário” para mitigar a crise. Como em outros países poderia subsidiar parte da folha de salários do setor privado, ampliar a ajuda aos trabalhadores informais, sustentar as finanças estaduais e municipais, suspender multas e juros de aluguéis, escolas, planos de saúde, contas de água e luz, reforçar o sistema de saúde e de proteção social, e muito mais.
O discurso e a prática da austeridade fiscal precisariam ser abandonados, não só durante a situação de emergência, mas no pós-pandemia. A volta ao arcabouço fiscal pré-crise retardará ou mesmo inviabilizará a recuperação do emprego, da renda e da saúde financeira de empresas e famílias sobreendividadas.
O presidente da República e seu entorno mais próximo, no entanto, insistem em “não ter dinheiro pra tudo isso”, além de insinuarem que o isolamento social decorre de interesses escusos esposados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), passando por potências globais, chegando a alguns prefeitos, governadores, parlamentares, membros do judiciário, imprensa e oposição.
Social, econômica, política, institucional e cognitiva, a crise poderá se intensificar.
* Mestre em Economia e auditor federal de Finanças e Controle, é secretário-executivo do Sindicato Nacional dos Auditores e dos Técnicos Federais de Finanças e Controle (Unacon Sindical).
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Felizmente o Tesouro Nacional é responsável e discorda dos achismos desse texto.
Sindicalista (e ainda mais funcionario publico – estavel) v~e sempre de forma diferente do CONTRIBUINTE