As repercussões da globalização na tributação brasileira. Esse foi o título da minha dissertação de mestrado. O nomadismo fiscal foi um dos vários aspectos abordados. Em síntese, trata-se do fenômeno caracterizado pela movimentação, notadamente de domicílio entre países, buscando o melhor ambiente fiscal possível (menor tributação). Ilustrei a abordagem do tema com a seguinte curiosidade: “Um dos exemplos mais emblemáticos do nomadismo fiscal nos tempos de globalização ocorreu com a modelo francesa Laetitia Casta. A referida modelo foi escolhida como uma das Mariannes, símbolo da república francesa representado pela figura de um busto feminino. A honra de ser uma Marianne é enorme, como ocorreu com Catherine Deneuve durante longo período. O busto confeccionado chega a ser distribuído por todas as repartições públicas francesas./Ocorre que a modelo Laetitia Casta, conforme noticiou a imprensa internacional, adotou Londres como domicílio fiscal para escapar de uma tributação menos favorável existente na França“.
Em visita ao Louvre, considerado o maior e mais importante museu do mundo, procurei pela Marianne entre suas milhares de obras e suas infindáveis salas. A Marianne em questão é um famoso quadro do pintor Eugene Delacroix, denominado “A liberdade guiando o povo”. O mapa do museu indicava a presença da Marianne na sala 700, bem próxima da “grande galeria” e da mundialmente conhecida “Mona Lisa”.
Depois de ver a “Mona Lisa” na sala 711, numa verdadeira operação de guerra, onde você disputa um lugar quase no tapa para observar e fazer um registro fotográfico de uma pintura de dimensões físicas reduzidas e baixo impacto visual (ao menos para um leigo em artes), rumei para a sala 700.
Chegando na sala 700, nada de Marianne. Nenhum vestígio. Nenhuma indicação. Nenhuma informação. Situação estranha para o símbolo nacional da França. Aliás, símbolo que influenciou muitos outros países na representação da República. No Brasil, em especial, o busto feminino estilizado figura em vários brasões e bandeiras de municípios e Estados, além de aparecer em cédulas e moedas.
Já na saída do museu uma luz de esperança se acende. Avistei a indicação de uma exposição especial voltada para as obras de Delacroix, o autor do quadro onde aparece a figura icônica da Marianne.
Ao visitar o espaço da exposição especial não deu outra. Eis que surgiu, depois de duas ou três salas, nada mais nada menos que a Marianne. Os expositores deram pouco destaque para uma obra tão importante. Paciência…
Volto ao início deste texto. Lá tratei de uma “Marianne tributária”. É importante registrar que o povo brasileiro precisa ser guiado para a liberdade em matéria de tributação.
Não se trata da liberdade dos tributos ou da carga tributária. Uma carga tributária considerável é necessária para financiar os enormes compromissos do Estado brasileiro com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, como expressamente exige o texto constitucional, e se efetiva em amplos sistemas públicos de educação, saúde, previdência e assistência social. É sempre bom pontuar que o mercado não fez, não faz e nem fará nada de muito significativo em termos de combate estrutural às desigualdades socioeconômicas (não é a sua função, nem a sua vocação).
A libertação em questão é do modelo de tributação. Dito de outra forma, existe a necessidade de superação da profunda injustiça social instalada na tributação brasileira tal como se processa na atualidade. Seus traços mais salientes são: a) elevada pressão fiscal sobre o consumo e a renda-trabalho; b) menor incidência sobre a renda-capital e a propriedade; c) quantidade enorme de benefícios indevidos para setores e segmentos específicos; d) excessiva complexidade da legislação tributária; e) níveis insatisfatórios de recuperação da dívida ativa em função da ausência de meios humanos, materiais e normativos adequados; f) vários expedientes de elisão fiscal que reduzem significativamente a arrecadação e produzem desonerações em segmentos com alta capacidade contributiva; g) existe literalmente uma montanha de riqueza brasileira não tributada em paraísos fiscal; h) relativa fragilidade da Administração Tributária em função do número insuficiente de servidores e da falta de condições materiais adequadas de trabalho e i) elevadíssimos níveis de sonegação e evasão fiscais.
Portanto, uma nova alíquota de 35% para o imposto de renda das pessoas físicas (ou naturais), como estudado pela Receita Federal do Brasil, é, como parte de um conjunto de providências, uma medida salutar. Essas providências devem atacar os problemas apontadas linhas atrás. No campo específico do imposto de renda, seria preciso, entre outras iniciativas: a) corrigir adequada e anualmente a tabela; b) adotar uma progressividade efetiva com um número adequado de alíquotas (aliás, uma exigência constitucional); c) providenciar a incidência sobre a distribuição de lucros e dividendos; d) extinguir a tributação exclusiva na fonte; e) eliminar a tributação favorecida no âmbito de aplicações financeiras e f) suprimir mecanismos indevidos de redução do imposto (pejotizações, juros sobre o capital próprio, etc).
A nossa “Marianne tributária”, condutora da libertação do perverso modelo fiscal instalado no Brasil, não é uma pessoa, um candidato ou uma instituição. É uma referência meramente figurativa. Somente a conscientização e organização populares consequentes produzirão transformações significativas e inclusivas nessa e em outras áreas relevantes da realidade tupiniquim.
Aliás, muito cuidado, na seara fiscal e em outras fundamentais, com as análises e “propostas” veiculadas pela grande imprensa (e seus arautos) e pelo indefectível mercado e seus representantes (técnicos, candidatos e acadêmicos). Especial cuidado deve ser dispensado aos liberais: a) de conveniência; b) tardios e c) seletivos. Até porque o pensamento liberal, em que pese os equívocos, merece respeito e consideração pelo que tem de positivo e construtivo.
Não se perca de vista que o Estado, na faceta fiscal, assim como nas demais, não é a expressão maior dos males sociais. Não é um (ou o) inimigo consciente e insensível a ser derrotado ou domado. O espaço estatal, eis a dura e crua realidade, é meticulosamente capturado para, como instrumento, como ferramenta, satisfazer os humores e apetites de poderosas forças econômicas nacionais e transnacionais (em regra, profissionalmente “escondidas” pela mídia e pelos escândalos de corrupção).
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