Desde 1985 Vitor Nuzzi se interessava pela trajetória do cantor e compositor Geraldo Vandré, o principal expoente da resistência musical à ditadura militar durante os anos 60 (na década seguinte, tal papel seria desempenhado por Chico Buarque). Segundanista de Jornalismo, descobriu em 1985 o telefone do artista e disse estar querendo conversar com ele sobre um trabalho para a faculdade.
Foi recebido no apartamento que Vandré ainda possui na rua Martins Fontes, próximo ao prédio que durante muitas décadas sediou o jornal O Estado de S. Paulo, na capital paulista. A conversa foi cordial, mas breve.
Quando Vandré se tornou septuagenário, em setembro de 2005, Nuzzi temeu que ele mergulhasse cada vez mais no esquecimento; decidiu, então, assumir como sua a tarefa de apresentá-lo às novas gerações.
Foi um trabalho longo e abrangente como bem poucas biografias brasileiras. Entrevistou mais de 100 pessoas (inclusive esta que vos escreve), garimpou informações em 51 livros e 29 jornais/revistas. Com isto, pôde reconstituir nos mais ínfimos detalhes a história do artista.
Cheguei, em tempos idos, a indagar-lhe o que faria com tudo isto, já que Vandré dificilmente daria aval para a publicação e as biografias não-autorizadas eram um risco que as editoras não queriam assumir depois de Roberto Carlos impugnar judicialmente uma que contou verdades indigestas a seu respeito. Nuzzi disse que iria tocando seu trabalho, deixando para o final a escolha de uma linha de ação. Tinha esperança de que a liberdade de opinião e de expressão acabassem prevalecendo.
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Acabou pagando 100 exemplares do seu bolso e distribuindo-o aos amigos, em maio de 2015. Um mês depois, contudo, o Supremo Tribunal Federal fulminou por 9×0 a censura que figuras públicas queriam impor a quem fizesse abordagens independentes sobre elas, ao invés dos textos expurgados e bajulatórios que os Roberto Carlos da vida preferem ler.
PublicidadeE a odisseia de Nuzzi, depois dos mesmos 10 anos que durou a descrita por Homero, teve final feliz, com o lançamento, no final do ano, de Geraldo Vandré: uma canção interrompida (Karup, 2015, 352 p.).
É um trabalho de fôlego e muito bem escrito; tem qualidade superior, na minha opinião, à das obras congêneres de biógrafos famosos como Fernando Moraes e Rui Castro. Quem não acompanhou a trajetória de Vandré, certamente se deslumbrará.
E mesmo os contemporâneos de sua trajetória ficarão conhecendo muita coisa nova. Recomendo enfaticamente, ainda que o autor tenha feito a ressalva de que “vão continuar misteriosos” muitos pontos obscuros acerca do exílio e comportamento posterior de Vandré.
Acredito, contudo, que seria impossível, mesmo com o extremo profissionalismo e detalhismo de Nuzzi (a ponto de distribuir, junto com A canção interrompida, um relato mimeografado sobre as crônicas que Vandré escreveu durante alguns meses para um jornal de Campinas, certamente porque não deu tempo para acrescentar este capítulo ao livro), decifrar todos os enigmas da vida de quem insiste até hoje em permanecer enigmático.
Até porque Nuzzi, nascido em 1964, escreveu sobre muitas coisas de que só tomou conhecimento a posteriori. Talvez não haja, p. ex., conseguido consultar os números antigos mais cruciais do jornal Folha da Tarde, que foi um veículo simpático à esquerda até que, como um porta-voz dos patrões admitiu há cinco anos, sua linha foi diametralmente alterada em 1969, tendo a direção sido entregue “a jornalistas entusiasmados com a linha dura militar” (vários deles eram policiais)”, como “uma reação da empresa à atuação clandestina, na Redação, de militantes da ALN”.
Mas, foi nesse jornal que já não existe com tal nome (teve como sucessor o Agora São Paulo) e cuja memória é geralmente identificada com o impopular papel desempenhado a partir de 1969, que acompanhei, em 1967 e 1968, episódios como o da vitória da banal Sabiá no III Festival Internacional da Canção da Rede Globo, quando a ridícula decisão de júri provocou a maior vaia da história dos festivais de MPB.
E foi na Folha da Tarde que tomei então conhecimento, num artigo de autoria do grande radialista Walter Silva (o Pica-Pau, falecido em 1999) desta informação abaixo, que eu aproveitaria numa longa reportagem escrita para a revista Especial em 1980:
“Walter Silva ainda foi responsável por ter deixado um gravador ligado na sala do júri do III Festival Internacional da Canção, em 1968, no Maracanãzinho, no Rio, e depois denunciar a impostura na edição de 2ª feira do jornal paulista Folha da Tarde, provando que o presidente do júri, Donatelo Grieco, pressionara seus colegas para que não premiassem músicas que fazem propaganda da guerrilha. Este alegava que, caso contrário, haveria retaliações da ditadura. Era uma referência à música “Pra não dizer que não falei das flores” (ou, simplesmente “Caminhando”, de Geraldo Vandré.
Nuzzi obteve a confirmação de que houve mesmo pressão dos militares sobre os organizadores do festival, mas publica também declarações dos membros do júri negando terem sido pressionados. Cabe uma pergunta: pessoas famosas admitiriam que lhes faltou coragem para premiar a canção política mais importante da História brasileira, ignorando o clamor do público, como se fossem estetas numa torre de marfim?
Por toda a convivência pessoal e profissional que já tive com essa gente, eu diria que afinaram e hoje tentam salvar suas imagens. Se há algo que o jornalismo me ensinou, foi a nunca dar 100% de crédito a entrevistado algum.
Também é inverossímil ao extremo que os responsáveis pelo FIC, com a espinha flexível que era marca registrada dos profissionais da Globo nos anos de chumbo, tivessem ousado guardarem para si as ameaças dos fardados, torcendo para que, espontaneamente, o júri não premiasse nem a “Caminhando”, nem a “América, América”, de César Roldão Vieira (outra que a caserna impugnara). Fala sério…
Lamentavelmente, tive em mãos esse recorte da Folha da Tarde há 35 anos, mas não o possuo mais. Se armazenasse tudo que citei nos meus textos, precisaria de um quarto só para isso.
Sequestrado e internado. Para quê?
Quanto ao comportamento esquisito e errático de Vandré desde que voltou do exílio em 1973, todas as informações que Nuzzi levantou são conclusivas quanto ao fato de que Vandré não foi torturado antes de deixar o Brasil e dificilmente o terá sido na volta negociada para o país.
Estava em más condições psicológicas e com a saúde debilitada nos últimos tempos de exílio. Foi sequestrado discretamente pela ditadura no aeroporto e, um mês depois, a Globo o exibiu no Jornal Nacional como se estivesse desembarcando naquele instante.
Parece ter ficado 58 dias (antes e depois da entrevista ao JN) recebendo tratamento psiquiátrico. E, ao revê-lo em 1980 (estivera com ele em junho de 1968, quando ainda fazia correções na letra da “Caminhando”), papeamos durante horas no apê da rua Martin Fontes. Eis a impressão que me causou:
“Reparei que ele continuava lúcido, ao contrário das versões de que teria ficado xarope por causa das torturas. Mas, perdera a concisão e clareza. Seus raciocínios faziam sentido, mas davam voltas e voltas até chegarem ao ponto. Para entender a lógica do que ele dizia, eu precisava ficar prestando enorme atenção. Era exaustivo. O mais importante que ele disse: estaria na mira de organizações de extrema-direita, inconformadas com o gradual abrandamento do regime. A censura finalmente liberara “Caminhando”, que fazia sucesso na voz de Simone. Vandré explicou que tinha de passar-se por louco pois, se ele tentasse voltar à tona junto com a música, seria assassinado.“
Ou seja, ainda não estava tão aniquilado como o veríamos, com imenso pesar, naquela entrevista concedida em 2010 ao canal Globo News.
A menos que algum militar, algum médico ou algum enfermeiro abra o bico, jamais saberemos o que aconteceu com Vandré enquanto esteve internado (rigorosamente isolado dos demais pacientes) numa clínica do bairro de Botafogo, Rio de Janeiro.
Reafirmo a convicção que formei após assistir àquele melancólico programa, de que ele foi submetido a uma lavagem cerebral, A terapeuta brasileira Adriana Tanese Nogueira, radicada nos EUA, considerou plausível:
“É como se, de alguma forma, tivessem conseguido reprogramar o cantor de modo a manter sua aparente sanidade mas atuando em modo diferente. Celso Lungaretti sustenta a tese da lavagem cerebral, não em sentido amplo, mas estrito. Ela acontece quando se submete uma pessoa a uma condição de total dependência de seus carcereiros. Estes controlam tudo o que a pessoa faz, desde o que e quando ela come e vai ao banheiro, até o sono e todos seus movimentos. Dá para imaginar o que isso significa? Estar totalmente à mercê do inimigo cruel? Após um tempo assim, por instinto de sobrevivência e busca de sentido (para não ficar louca), a vítima passa do sentimento de pânico e abandono total àquele de buscar conivência com seus algozes. Se, além dos cuidados materiais pelos quais a vítima passa, são-lhe ministrados também cuidados psicológicos, tipo ensinar-lhe o que ela deve pensar e acreditar, temos um prato cheio para compreender a esquisita entrevista de Geraldo Vandré à Globo“.
Já o perfil de Vandré que se depreende da enxurrada de depoimentos de pessoas que o conheceram melhor do que eu me fez perceber que era totalmente infundada a hipótese que levantei, de que ele haveria entrado (ou fingido estar) em parafuso por não estar suportando o fato de que seu comportamento diante do inimigo ficara bem abaixo da imagem que tinha de si mesmo.
Levei a sério demais a constatação de que, dos compositores engajados daquela época, ele era o único a se colocar, na primeira pessoa, como personagem de suas letras. Todos os demais contavam histórias genéricas, tendo como heróis o morro, povo, os camponeses, os operários, Che Guevara, Zumbi, Tiradentes, etc.
Em “Aroeira”, o narrador (Vandré) declara estar “escrevendo numa conta/ pra juntos a gente cobrar/ no dia que já vem vindo/ que este mundo vai mudar”. E alerta os marinheiros (os colonizadores portugueses) que está próxima “a volta do cipó de aroeira/ no lombo de quem mandou dar”.
“Bonita” é uma guarânia na qual um presumível guerrilheiro tenta explicar à sua amada que não a pode tomar naquele instante e (como poderá morrer seguindo o destino que escolheu) talvez ela só venha novamente a saber dele “se um dia encontrares alguém/ que te cante meus versos”.
Há outras. A mais explícita de todas, “Terra plana”, traz esse desafio que o combatente lança a um militar: “Se um dia eu lhe enfrentar/ Não se assuste, capitão/ Só atiro pra matar/ E nunca maltrato não/ Na frente da minha mira/ Não há dor nem solidão/// E não faço por castigo/ Que a Deus cabe castigar/ E se não castiga ele/ Não quero eu o seu lugar/ Apenas atiro certo/ Na vida que é dirigida/ Pra minha vida atirar”.
A canção interrompida me fez cair a ficha: Vandré havia dado um duro danado para se tornar artista vitorioso e era exatamente isto que ele queria ser. Acreditava nos ideais da esquerda e era favorável à luta armada, mas nunca como causas às quais se pretendesse engajar como militante. Cansava de repetir que sua atuação não era partidária.
A sensibilidade de artista o levava a incluir tais fantasias em suas músicas, mas ele apenas se colocava imaginariamente no lugar dos revolucionários e dos guerrilheiros. Não queria ser uma coisa nem outra.
Daí ter-lhe pesado tanto o fardo que passou a carregar em suas andanças de judeu errante pelo mundo: se formiga aguentaria, mas, cigarra, não estava preparado para tais rigores. O exílio o desconstruiu antes mesmo de os militares o terem à sua mercê; e isto, certamente, facilitou-lhes a tarefa de reprogramá-lo, como disse a Adriana.
E lá se foi outra das fantasias que nos ajudavam a manter a sanidade durante aqueles anos terríveis! Ainda assim continuo lamentando – e muito! – que esse extraordinário artista tenha caído numa armadilha da História, acabando por ser destruído.
Nunca haverá desculpa para os que fizeram desabar tamanha tempestade em cima de um músico, apenas por ele ter composto uma canção que expressou o sentimento de todo um povo.
Como bem lembrou o Benito de Paula, “esse trapo, esse homem um dia foi um rei”.
* Celso Lungaretti é jornalista, escritor e ex-preso político. Edita o blogue Náufrago da Utopia.
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