Lúcio Lambranho
A tragédia ainda viva dos catadores de feijão piauienses revelada numa série de reportagens pelo Congresso em Foco, em julho (leia mais), não é caso isolado nas áreas rurais Brasil afora. Entre 2004 e 2006, o Ministério da Previdência, por meio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), registrou 6.486 acidentes. Entre eles, o que matou 14 dos 79 trabalhadores que retornavam da Bahia para o sul do Piuaí, em 1995, transportados num caminhão, junto com uma carga de 105 sacas de feijão, após serem submetidos a condições degradantes de trabalho.
Esses são os dados mais recentes de acidentes de trabalho no trajeto, conforme é definido esse tipo de ocorrência no cadastro Comunicação de Acidentes do Trabalho (CAT). No mesmo período, foram registradas 806 mortes decorrentes de acidentes de trabalho no meio rural. Mas as estatísticas do governo federal não permitem concluir quantas dessas mortes foram causadas pela precariedade das condições no transporte de trabalhadores (veja a tabela).
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Os deslocamentos em grandes distâncias, sem condições de segurança, feitos até hoje em caminhões de carga ou em ônibus velhos, como no caso dos trabalhadores de Corrente (PI), são comuns, segundo entidades que atuam no combate ao trabalho escravo ouvidas pelo site.
Os empregadores preferem aliciar o trabalhador longe da região das propriedades onde vão atuar, principalmente na época das colheitas ou plantio. A prática dificulta ou até mesmo impede que o trabalhador denuncie as condições análogas à escravidão em áreas rurais onde ele não tem o apoio da família ou vínculo algum com as comunidades.
Informalidade
“O grande problema dos acidentes de trabalho no meio rural também é que a informalidade ainda atinge dois terços do setor. E a informalidade dificulta a fiscalização”, atesta o diretor do Departamento de Saúde e Segurança Ocupacional do Ministério da Previdência, Remígio Todeschini, responsável pelo CAT.
Segundo Todeschini, outro problema enfrentado pelo governo é que existem deficiências, em torno de 20% a 25%, nos registros feitos pelas empresas junto ao CAT, o que pode elevar os números do problema diante dos dados oficiais. A comunicação também determina o pagamento de benefícios da Previdência Social aos trabalhadores vítimas de acidentes. “Para saber quantas pessoas morreram por acidentes nos trajetos é preciso analisar caso a caso”, admite o diretor do Ministério da Previdência.
Todeschini explica que a comissão tripartite sobre segurança no trabalho, criada em maio deste ano, deve tratar do tema. O colegiado é formado por representantes dos trabalhadores, dos empregadores e dos ministérios da Previdência, da Saúde e do Trabalho. Essa comissão tem a missão de propor a ampliação das políticas de prevenção e pesquisas para uniformizar os procedimentos e normas do governo federal nesta área.
Segundo os dados mais recentes da Previdência, em 2006, foram registrados 503.890 casos de acidentes e doenças do trabalho no Brasil. Deste total, 2.717 resultaram em morte. Juntos, esses casos custam, por ano, mais de R$ 10 bilhões aos cofres da Previdência. Ou seja, as mortes nas atividades rurais, como no deslocamento de trabalhadores, representaram, naquele ano, 9% do total, considerando que 251 trabalhadores rurais morreram em decorrência de acidentes de trabalho no período.
“Prioridade nacional”
Em março de 2005, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) determinou regras específicas na Norma Regulamentadora 31 (NR31) para o transporte de empregados no meio rural.
Desde então (veja a tabela completa), do total de 159.379 itens de segurança no trabalho rural verificados nas 2.444 ações fiscais realizadas pelo MTE, 5.713 (6%) diziam respeito ao transporte de trabalhadores. De julho de 2005 até junho deste ano, os fiscais fizeram 671 autuações por problemas encontrados nos meios de transporte oferecidos pelos proprietários rurais aos trabalhadores do campo.
Apesar de as fiscalizações estarem sob a responsabilidade da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), no MTE, o Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo da pasta também verifica o cumprimento da NR 31. “As duas áreas são integradas e o transporte de trabalhadores é verificado tanto pela fiscalização de rotina quanto pela fiscalização do grupo móvel”, explica Júnia Barreto, diretora do Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho.
“A fiscalização do trabalho rural, inclusive do transporte de trabalhadores, é uma prioridade nacional da SIT. Todas as comissões tripartites relacionadas ao tema do trabalho rural discutem e têm ações que visam a coibir as irregularidades também no transporte”, avalia da diretora do MTE.
Vistorias terceirizadas
Mas, apesar da disposição do MTE em fiscalizar, a norma criada em 2005 não mudou a situação em algumas regiões, como São Paulo. Para o auditor fiscal e coordenador do grupo rural da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP), Roberto Martins, a NR 31 tem sido respeitada pelos empregadores no cumprimento de outros itens de segurança determinados pela norma, mas o transporte dos trabalhadores no meio rural ainda tem muitos problemas no estado mais rico do país.
“Esse é um dos principais problemas enfrentados pelos fiscais do grupo rural. Não há o rigor necessário na vistoria dos ônibus, serviço terceirizado pelo estado”, avalia Martins. Segundo ele, 50% dos ônibus que circulam no meio rural, mesmo com autorização, não têm as mínimas condições de uso. Outros 20% são ilegais, principalmente no setor sucroalcooleiro. Uma única empresa com mais de 20 ônibus, por exemplo, teve oito veículos apreendidos numa ação dos fiscais.
A falta de fiscalização e de segurança e a ocorrência de graves acidentes com trabalhadores rurais no interior de São Paulo foram alvo de uma investigação do Ministério Público do Trabalho (MPT).
Segundo dados da Delegacia Regional do Trabalho (DRT), divulgados ainda em setembro de 2006, a maioria dos ônibus de transporte de trabalhadores rurais tinha mais de 20 anos de uso. Em 2005, morreram 416 trabalhadores somente no setor sucroalcooleiro, a maioria por acidentes nas estradas. “São verdadeiras sucatas, com até 40 anos de uso, que não tem condições de transportar nem carga e nem animais quanto menos gente”, dispara o auditor.
Antônio Lucas, secretário de Assalariados e Assalariadas da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), também concorda com os problemas apontados pelo auditor no setor de álcool e açúcar. Segundo ele, a atividade de corte e plantio de cana emprega cerca de 400 mil trabalhadores em todo o país. Mas Lucas afirma que a NR31 já foi incorporada em quase 100% dos acordos coletivos entre os sindicatos e os empresários do setor.
O problema, diz o secretário da Contag, é que apenas cerca de 20% dos acordos coletivos de todas as atividades rurais contêm os itens de segurança incorporados pelo MTE. “Ainda é muito pouco, porque acidentes desse tipo dificilmente não têm vítimas graves, considerando o estado precário dos ônibus”, afirma. A Contag defende que as normas sejam iguais às exigidas para o transporte escolar e que a fiscalização e as vistorias dos ônibus sejam unificadas em todo o Brasil. “Hoje, cada estado faz de uma maneira diferente, o que prejudica a fiscalização”, completa o dirigente da confederação.
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