Mulheres negras são alvos de crimes e discursos de ódio pós–eleições 2020
“Não serei interrompida, não aturo interrupção dos vereadores desta Casa, não aturarei de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita”. Sem saber que aquele seria o seu último discurso no plenário da Câmara de Vereadores/as do Rio de Janeiro, em 8 de março de 2018, Dia Internacional das Mulheres, Marielle Franco sintetizava o que o racismo busca todos os dias: interromper as mulheres negras que ousam romper com a imposição da submissão e do silenciamento.
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Na primeira eleição municipal após o assassinato que interrompeu a trajetória da “cria da favela Maré”, como Marielle se autodefinia, as suas sementes – outras mulheres negras que decidem participar da vida pública – seguem vítimas de manifestações de ódio, nas redes e nas ruas.
Dias após receber mais de três mil votos como candidata a prefeita de Curralinho, no arquipélago do Marajó, no Pará, Leila Arruda (PT) foi assassinada a facadas e pauladas. De acordo com familiares, Leila foi morta pelo ex-marido, que a perseguia e ameaçava desde o final do relacionamento, há três anos, inconformado, dentre outros fatores, por sua atuação política.
Enquanto uma mulher negra do Norte do país era vítima de feminicídio, uma mulher negra do Sul do Brasil era vítima de racismo e ameaças de morte em redes sociais: “agora só falta a gente matar ela e entrar o suplente que é branco”, “os fascistas mandaram avisar que ela que se cuide”, foram algumas das mensagens direcionadas a Ana Lúcia Martins, professora aposentada, 54 anos, eleita vereadora de Joinville, Santa Catarina, pelo Partido dos Trabalhadores.
Antes mesmo do encerramento das votações do primeiro turno, em 15 de novembro, a então candidata teve as suas contas em redes sociais invadidas e suas fotos e dados biográficos apagados. Com a vitória confirmada, sendo a sétima mais votada da maior cidade catarinense, Ana Lúcia passou a ser alvo de perfis que se identificam como integrantes da “juventude hitlerista de Santa Catarina”.
Ainda durante a campanha eleitoral, em um ato de rua no dia 7 de novembro, Edilmara Rangel e Kelly Kuster, mulheres negras, então candidatas respectivamente a vice-prefeita e vereadora de Cariacica, no Espírito Santo, pelo partido Rede Sustentabilidade, foram chamadas ofensivamente de “crioulas” por um homem e ouviram de outro se “não teriam roupa para lavar”.
Violência política racial e de gênero
Mais do que episódios isolados, os crimes e violências contra Marielle, Leila Arruda, Ana Lúcia, Edilamara e Kelly são expressões de um mesmo fenômeno, qua algumas intelectuais e ativistas qualificam como violência política racial e de gênero.
Assistente social e coordenadora-geral da ONG Criola, Lúcia Xavier ressalta que a violência política se constitui a partir da “intolerância a outros pensamentos, a outra maneira de agir e às reivindicações de mulheres negras e outros segmentos vulnerabilizados”.
De acordo com Xavier, a violência política alcança, atualmente, um patamar institucionalizado considerando que “se relaciona com o contexto político que estamos vivendo em relação a direitos e à participação” e “é articulada sobretudo com as condutas governamentais do grupo que hoje governa o país. É um grupo que estimula a violência e elege as questões raciais, de identidade de gênero e orientação sexual como alvos do ódio. Quando os alvos integram grupos que representam a esquerda, isso é uma agravante”.
Para Valdecir Nascimento, historiadora, mestra em Educação e coordenadora do Odara – Instituto da Mulher Negra, a violência política está entrelaçada a aspectos estruturais da formação brasileira. “O que determina a violência política é a crença da supremacia branca brasileira, que é também patriarcal e misógina, de que a política não é o lugar para as mulheres negras. Os espaços institucionais afirmam que nossa tarefa é continuar reelegendo eles para que eles continuem recrudescendo a violência sobre nós”, ressalta.
Confirmando as análises de Lúcia Xavier e Valdecir Nascimento, um estudo realizado pelo Instituto Marielle Franco revelou que 98.5% dentre 142 mulheres que foram candidatas nas eleições municipais desse ano sofreram mais de uma violência política.
Intitulada “A violência política contra mulheres negras”, a pesquisa demonstrou que 80% das mulheres negras candidatas foram vítimas de violência virtual, 60% sofreram violência moral e psicológica, 50% relataram ter sido alvo de violência institucional e 42% de violência física.
As violências que se articulam nas redes e nas ruas
Numa eleição com campanhas realizadas em grande medida pelas redes sociais e com menor índice de atividades de rua, por ocasião da pandemia de covid-19, o fato do ódio pelas redes ter sido o principal tipo de violência relatada pelas mulheres negras é bastante representativo de como as violências nas redes se articulam com as agressões sofridas nas ruas.
Comentários ou mensagens racistas e misóginas, reuniões virtuais e atividades online de campanha invadidas e ataques durante lives em que participavam foram algumas das expressões do ódio online que tentou interromper as mulheres negras no processo eleitoral.
Valdecir Nascimento frisa que “as violências virtuais refletem as violências do cotidiano, são similares às violências sofridas pelas mulheres negras no trabalho, no transporte urbano, ao tentarmos adentrar um restaurante ou uma loja. Se o imaginário construído sobre nós nos livros didáticos, nas mídias e nas narrativas corriqueiras permanecem as mesmas, permanece também a violência, mas agora também com outra ferramenta, que invade as nossas casas para nos ameaçar e desqualificar”.
Análise semelhante faz Lúcia Xavier, ao apontar que “o ataque nas redes é um sinal do ódio que cerca as ruas, que anda pelas esquinas. É um ódio que se apresenta a partir de ameaças no processo virtual, achando que não haverá descoberta, mas que se soma à possibilidade das mulheres negras estarem em risco constante por conta da sua representatividade e da sua atuação política”. Foi esse entendimento que fez a ONG Criola lançar, em 2015, a campanha “Racismo Virtual. As consequências são reais”, que buscava expor nas ruas, por meio de outdoors e busdoors, postagens racistas feitas na internet.
Xavier chama a atenção também para a importância da discussão sobre a regulação das plataformas virtuais, no sentido de proteger as mulheres negras dessas violências. “Esse discurso de ódio nas redes sociais tem a ver com políticas de segurança e privacidade que não são respeitadas. Sempre que as mulheres negras são atacadas os recursos para as suas defesas são parcos. As redes e os seus respectivos donos estabelecem protocolos frágeis para esse tratamento. Por isso, elas são abertamente atacadas”, argumenta.
O alerta da coordenadora da ONG Criola demonstra-se essencial, na medida em que o ódio online praticado contra as mulheres negras extrapola os períodos eleitorais. A tese de doutorado do pesquisador brasileiro Luiz Valério Trindade, desenvolvida na University of Southampton, não deixa dúvidas sobre isso: ao analisar cerca de 16 mil perfis de usuários na internet, entre os anos de 2012 e 2016, o pesquisador constatou que aproximadamente 80% dos conteúdos e discursos de ódio nas redes sociais têm as mulheres negras como alvo.
As violências que se fortalecem com um Estado conivente
Um fator que certamente contribui para a profusão de violências contra as mulheres negras é a ausência de encaminhamentos efetivos de combate a tal prática pelas instituições do Estado brasileiro.
Ana Lúcia, Edilmara e Kelly, mencionadas no início dessa reportagem, formalizaram boletins de ocorrência. Isso não é, porém, o que ocorre com a maioria das mulheres negras vítimas da violência política: segundo a pesquisa do Instituto Marielle Franco, apenas 32,6% das candidatas com esse perfil registraram denúncias, em suas próprias redes sociais, aos seus partidos ou em delegacias.
Além disso, 70% relataram não ter contado com nenhum apoio institucional para entender as medidas de cuidado a adotar ou proteção dos seus dados pessoais e indicaram que a denúncia não representou mais segurança para o exercício das suas atividades político-partidárias.
Em entrevista à Agência Pública, Anielle Franco – irmã de Marielle e coordenadora do Instituto –, refletindo sobre esses dados, disse que “a sociedade não tem estruturas de acolhimento eficazes para as mulheres negras vítimas de violência política mesmo depois do que aconteceu com minha irmã. A maioria das mulheres não se sente confortável para denunciar. E isso acontece justamente porque a maioria das mulheres que denunciam não vê resultados nas denúncias. Isso precisa acabar”.
Mulheres Negras e outros grupos sub-representados querem se ver no poder
A violência política contra mulheres negras e outros grupos sub-representados na política brasileira é um dos temas prioritários da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, articulação da sociedade civil que atua para mudar a forma como o sistema político brasileiro está organizado institucionalmente
Conforme conteúdo divulgado pela Rádio Plataforma – uma das iniciativas de comunicação dessa rede de movimentos e entidades -, “durante as eleições municipais deste ano ficaram ainda mais evidentes os ataques de ódio a candidatas, principalmente mulheres negras e trans”.
Visando pautar essa e outras questões relacionadas ao sistema político, a campanha #QueroMeVernoPoder, outra ação da Plataforma, produziu diversos conteúdos – feitos por jovens de todo o país – sobre o contexto da sub-representação de mulheres, negros, indígenas , quilombolas, povos tradicionais de matriz africana, jovens e LGBTQIA+ nos cargos públicos eletivos durante as Eleições 2020.
As sementes que vão rompendo as barreiras do racismo e do patriarcado
Com uma existência que em si já incomoda, com corpos que incomodam e com ideias e propostas que incomodam a mentalidade e estrutura racistas e patriarcais da sociedade brasileira, as sementes de Marielle – que são como sementes crioulas, mais resistentes, mais diversas e produzidas coletivamente – enfrentam a opressão, resistem ao ódio e conseguem vitórias eleitorais em diferentes partes do país.
Nesse sentido, vale enfatizar que diversas capitais e grandes cidades terão pela primeira vez, a partir de 1 de janeiro de 2021, mulheres negras como vereadoras. É o caso da própria Joinville, com Ana Lúcia Martins; Vitória (com Camila Valadão, do Psol, e Karla Coser, do PT); Campina Grande (Jô Oliveira, do PcdoB); Curitiba (Carol Dartora, do PT); e Cuiabá (Edna Sampaio, do PT).
Representam também avanços na luta antirracista e feminista negra as expressivas votações de mulheres negras em outras cidades. Em Porto Alegre e Recife, por exemplo, mulheres negras – Karen Santos e Dani Portela, respectivamente, ambas do PSOL – foram as mais votadas e presidirão as sessões de abertura dos trabalhos legislativos em suas cidades.
Outras vitórias importantes de mulheres negras em capitais brasileiras nas eleições de 15 de novembro foram: Divaneide, do PT, segunda mais votada em Natal; Vivi Reis, do PSOL, quinta candidata mais votada em Belém; Erika Hilton, mulher negra e transexual, do PSOL, sexta mais votada na cidade de São Paulo; e Tainá de Paula, do PT, que teve a nona melhor votação para a Câmara do Rio de Janeiro.
Analisando esses resultados, Valdecir Nascimento, que é também coordenadora do Fórum Permanente pela Igualdade Racial, avalia que a eleição de mulheres negras para casas legislativas municipais “é apenas o anúncio do que queremos para essa nação e que é ainda pouco para o que representamos e para a nossa participação na sociedade brasileira”.
Valdecir compreende também que essas vitórias e a violência política sofrida pelas mulheres eleitas expressam como “a ampliação da consciência política da população negra é um incômodo, é uma bomba em estado de explosão e a supremacia branca precisa barrar porque não sabe a dimensão do que isso pode gerar para si, já que ao alcançarmos esses espaços estamos rompendo com os privilégios”.
Na mesma perspectiva, Lúcia Xavier atribui as votações obtidas por mulheres negras a uma série de aspectos articulados. “O que vemos espelhado no pleito eleitoral, de um grupo dizendo que quero essa candidata ou esse candidato, significa que, de certa forma, o trabalho realizado ao longo do tempo pelos movimentos sociais permitiu que víssemos ativistas e militantes como sujeitos políticos importantes para fazer as mudanças. Significa também que essa representação furou a bolha e as pessoas não olham mais a dimensão coletiva necessariamente como um problema. E quer dizer também que há aí um traço individual, de história e dos compromissos assumidos”, acredita.
A assistente social e ativista de direitos humanos destaca também que a cada vez maior participação de mulheres negras na política institucional sinaliza “rachaduras no mito da democracia racial, no racismo e sobretudo na democracia brasileira, que é fundada na exclusão desse grupo. E essas fissuras produzem algumas tensões, que vão produzir as mudanças. E são essas mudanças que vão consolidar ou não novos processos na nossa democracia”.
Lúcia Xavier adverte ainda ser necessário o envolvimento da sociedade e do Estado com a defesa e segurança dessas mulheres negras, já que “os impedimentos à participação das mulheres negras na política institucional seguirão do modo que seguiram até hoje”.
Esses impedimentos, barreiras e muros não serão, porém, suficientes para silenciar as mulheres negras, afinal, como lembrou Valdecir Nascimento, “não adianta tantas pedras no caminho, retiraremos todas. Existe um força negra, ancestral, que emana em nós, que não deixa a gente calar, que não deixa a gente se render”.
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