A violência policial racista contra jovens negros nos EUA ganhou as manchetes internacionais e deu início a um inédito movimento antirracista em vários países. Mas o racismo não é uma novidade na terra da Ku Klux Klan (KKK), ainda ativa em sua criminosa ação em defesa da supremacia branca e da eliminação física dos chamados “racialmente impuros”.
Não custa lembrar que a Declaração Americana dos Direitos do Homem – ainda hoje admirada como referência de direitos humanos por pregar a liberdade e a igualdade como bens inalienáveis – não foi capaz de abolir o gravíssimo crime da escravidão. A proibição oficial da escravidão em solo estadunidense somente ocorreria em 1865, depois de uma guerra civil e da aprovação da Emenda 13, durante a presidência de Abraham Lincoln.
A segregação racial, entretanto, seguiu legalizada através do escandaloso slogan “separados, mas iguais”. A proibição de ingresso de pessoas negras em escolas, restaurantes, hotéis, teatros e diversos estabelecimentos reservados aos brancos perdurou nos Estados Unidos até 1964, quando o presidente Lyndon Johnson – pressionado por marchas que reuniam centenas de milhares de ativistas e da recusa de Rosa Parks em ceder o seu assento em um ônibus para um passageiro branco – assinou as Leis dos Direitos Civis. Ainda assim, às custas dos assassinatos dos líderes Malcon X e Martin Luther King, dos incontáveis atos de violência contra milhares de ativistas e das decisões da Corte Suprema que reconheciam as inconstitucionalidades das leis segregacionistas estaduais.
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O assassinato filmado de George Floyd desnudou o que já era conhecido, debatido e denunciado em diversos momentos, instâncias e órgãos estatais. Afinal, não era a primeira vez em que policiais brancos assassinavam impunemente jovens negros no país que faz do “sonho americano da igualdade e da oportunidade para todos” uma peça de propaganda ideológica. É conhecida a persistência do sistema racista estadunidense apesar das leis e de ações judiciais. Não foi um episódio isolado, em um dia infeliz, em que a polícia se recusou a escutar o desesperado grito: Não consigo respirar.
Os assassinatos recentes dos jovens Trayvon Martin, Mike Brown, Breonna Taylor e Ronald Johnson – em cidades e por agentes estatais diferentes – testemunharam a brutalidade racista que originou o movimento de resistência Black Lives Matter. A mesma brutalidade que ceifou a vida do guineano Amadou Diallo, assassinado na porta de sua casa, com 41 tiros disparados por quatro policiais novaiorquinos brancos. E o oposto do que ocorreu com Bernhard Goetz, o segregacionista branco – glorificado pela imprensa como “O Vigilante do Metrô de Nova Iorque” – inocentado do assassinato coletivo de quatro jovens negros desarmados, sob a alegação de que ele acreditava que seria agredido.
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O vídeo que mostra George Floyd sendo brutalmente assassinado por um policial branco em Minneapolis chocou, emocionou e provocou a justa repulsa da comunidade internacional. Diante da repercussão global e das chocantes imagens, a sociedade e os governantes não mais poderiam negar o racismo ainda presente na vida dos americanos. O criminoso ato revelou ao mundo a dicotomia entre o “dever ser” do direito e o que “de fato é” na vida das pessoas excluídas do próprio direito. O racismo – seguindo o roteiro estabelecido em “A roupa nova do rei”, o conto escrito pelo dinamarquês Hans Christian Andersen – estava desnudo, nu, escancarado e sem disfarce.
Há muito o racismo está assumidamente despido no Brasil. Segundo o Mapa da Violência, sete jovens são assassinados por hora no Brasil e destes, 80% (oitenta por cento) são negros. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada na legislatura passada e que investigou o altíssimo número de mortes de jovens negros e pobres no país, chegou à trágica conclusão de que uma vida é assassinada no Brasil a cada 23 minutos. E o número não para de aumentar, agora com a decisiva e cruel colaboração do aparelho policial. Amarildo, Arthur, Yasmim, Rosângela, Maria Eduarda, Fernanda e João Pedro são exemplos de mortes de pessoas negras reveladas e não desconhecidas da sociedade.
O último país da América a abolir oficialmente a escravidão ainda segue afirmando – no maldizer racista de Sérgio Camargo, o trágico presidente da Fundação Cultural Palmares – que o “movimento negro é a escória maldita que abriga vagabundos”. O perverso argumento do dileto representante do bolsonarismo que não se emociona com o genocídio das comunidades negras; não fica ruborizado com as repetidas e impunes mortes de jovem negros por direcionadas balas; não se envergonha com a cor estampada nas degradantes celas do sistema carcerário; não dá importância ao desprezo governamental com quilombolas; e não se revolta com a desigualdade econômica, o analfabetismo, os salários aviltantes e o desemprego impostos pelo exclusivo critério racial.
As mobilizações mundiais antirracistas precisam urgentemente pousar no Brasil, ainda que cínica e tresloucadamente sejam acusadas por vozes governamentais de “terroristas”. A sociedade brasileira que admira, divulga, acompanha e defende o protesto estadunidense – exigindo mudanças urgentes que coíbam a violência racista estrangeira – precisa fazer o dever de casa. Racismo é racismo em qualquer lugar do mundo. E o racismo brasileiro, revelado diariamente em cada esquina, não pode seguir impune ou fingido inexistir. Afinal, nos EUA ou no Brasil, vidas negras importam!
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*Cezar Britto é advogado e escritor, autor de livros jurídicos, romances e crônicas. Foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e da União dos Advogados da Língua Portuguesa. É membro vitalício do Conselho Federal da OAB e da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.
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