Por Katia Maia*
As desigualdades brasileiras estão escancaradas. Por trás das máscaras, obrigatórias em tempos de pandemia, é indisfarçável a expressão de espanto de uma sociedade acostumada a conviver, há mais de 500 anos, com abismos sociais e econômicos, com o racismo, a discriminação e o machismo. O Brasil está entre os países mais desiguais do mundo e isso deveria ser visto como uma vergonha.
No entanto, os abismos brasileiros crescem ainda mais. As desigualdades não apenas se desnudam, mas tendem a se ampliar e aprofundar. A situação é alarmante, hoje e no pós-pandemia.
A crise econômica mundial empurrará cerca de 500 milhões de pessoas para a pobreza segundo relatório global da Oxfam sobre a pandemia – “Dignidade, não Indigência”, lançado recentemente.
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No Brasil, análises feitas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e outras instituições estimam que as filas de 13 milhões de desempregados ganharão pelo menos mais 2,5 milhões até o final do ano. Economistas indicam que o PIB de 2020 deve ser negativo em até 6,5%. O país já apresentava indicadores sociais preocupantes antes mesmo do coronavírus: o aumento da pobreza, o ressurgimento da fome, o aumento da desigualdade de renda, a redução de investimentos sociais, especialmente nas áreas de saúde, educação e proteção social.
Poderíamos escrever páginas sobre números que indicam o tamanho do desafio que enfrentamos no país. Mas nem precisamos das estatísticas: basta olhar atentamente o que está acontecendo ao nosso redor. As favelas abrigam pelo menos 13 milhões de pessoas, sem moradias adequadas ou serviços básicos de saúde, saneamento, educação. Nelas não é possível seguir as recomendações sanitárias básicas, de se lavar as mãos com frequência por exemplo.
A população em situação de rua, que passa despercebida pela sociedade, cresce a olhos vistos. Valas comuns sendo usadas para os enterros das vítimas da pandemia. Filas cada vez maiores se formam para recebimento do Auxílio Emergencial e há muitas pessoas ainda não atendidas. As micro, pequenas e médias empresas não conseguem acessar o crédito anunciado pelo governo federal e estão fechando as portas, o que significa mais desligamentos de empregos.
A ideia de que a pandemia atinge a todos de forma igual, ainda que correta em princípio, é desafiada pela realidade de um país tão desigual. É certo que qualquer pessoa pode se contaminar. Mas também é verdade que condições sociais e econômicas podem aumentar as chances de contaminação, do desenvolvimento da doença e do número de mortes. Mortes, muitas delas, evitáveis!
Soma-se a esse contexto a conturbada situação política do país com ameaças constantes à democracia e suas instituições. O Brasil está sendo guiado por um projeto de governo baseado no autoritarismo, na negação dos direitos humanos, no conflito, na propagação do ódio e da violência, na destruição dos direitos dos povos indígenas e quilombolas, na destruição de uma educação crítica e de qualidade, nas notícias falsas, na negação da diversidade cultural e na negação do racismo. E o que não é destruição e negação, é a promoção de uma economia ultraliberal, fundada em privilégios setoriais e totalmente desconectada da realidade da população. O presidente Jair Bolsonaro, longe de ser um personagem caricato, está colocando em prática esse projeto, que conta com a participação dos que com ele estão no governo.
Diante da combinação simultânea de desafios, é urgente que o Brasil se veja por inteiro no espelho e a partir daí possa estabelecer um pacto para a construção de um país mais democrático, justo e solidário. O caos só interessa e favorece ao próprio caos. A pandemia nos chacoalhou e mostrou a necessidade de mudanças profundas. É o momento de se implantar medidas que viabilizem o Brasil.
É preciso defender a democracia e suas instituições, por meio do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal (STF) e da mobilização da sociedade de forma ampla e diversa. Ditadura nunca mais não é um bordão, mas sim um valor. Esses passos, no entanto, não são suficientes. Para que o Brasil seja realmente um país democrático é preciso entender que “enquanto houver RACISMO não haverá democracia”, conforme apresentado no manifesto lançado pela Coalizão Negra por Direitos.
Para enfrentar os desafios econômicos e sociais é fundamental que a reforma tributária retorne à agenda do Congresso Nacional. Porém, uma reforma que priorize a eficiência de impostos sobre consumo estará na contramão da história. O sistema tributário brasileiro fere a própria Constituição Federal e foi por isso que a Fenafisco (Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital), com o apoio do CADHu (Coletivo de Advogados em Direitos Humanos) e da Oxfam Brasil entraram com a ADPF 655 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) no STF para que se reconheça seu “estado de coisas institucional”. O Congresso Nacional tem o dever de construir, com a sociedade, uma reforma tributária que seja justa e solidária, na qual distorções e privilégios sejam eliminados.
E não se pode deixar de mencionar que precisamos de uma economia que esteja a serviço da sociedade. Uma economia que tenha a humanidade e a sustentabilidade ambiental como pilares. Nesse sentido, a economia que aceita a “passagem da boiada” como forma de atrair investimentos, e que tem o ajuste fiscal da ineficaz e cruel Emenda Constitucional 95 como mantra, tem vida curta.
Queremos mais justiça, menos desigualdades!
*Katia Maia é socióloga e diretora-executiva da Oxfam Brasil.