Danilo Cabral *
A celebração do 20 de novembro, o Dia Nacional da Consciência Negra, data da morte do grande herói brasileiro, Zumbi dos Palmares, nos provoca a reafirmar a memória e a luta contra a exclusão, o racismo, o preconceito e a desigualdade social decorrentes de quatro séculos de escravidão africana no Brasil. É uma data para se refirmar o combate ao racismo explícito, já criminalizado pela nossa legislação, mas acima de tudo, debater o racismo subterrâneo, presente na vida cotidiana do brasileiro, quando associa o negro a estereótipos negativos ou mesmo pela exclusão a que foram submetidos historicamente.
Apesar de o IBGE, em 2014, registrar que 54% dos brasileiros autodeclaram-se negros ou pardos, apenas 17% dessa parcela populacional, no entanto, encontra-se entre os mais ricos. Ainda de acordo com o órgão, 38,5% dos negros compõem 30% dos extratos mais pobres da sociedade. O retrato da desigualdade se apresenta de forma generalizada. Os negros estão entre os mais pobres, os menos escolarizados, os de menor renda e os que mais são mortos pelas polícias nas grandes cidades brasileiras. Mesmo assim, há uma grande dificuldade no Brasil de reconhecer a distância social existente entre os negros e o resto da sociedade, assim como a importância das ações afirmativas para diminuir a desigualdade.
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O relatório produzido pela ONG britânica Oxfam, denominado “A distância que nos une: Um retrato das desigualdades brasileiras”, publicado em 2017, revela que, se mantido o ritmo médio de redução anual de desigualdades, os negros só alcançarão a renda dos brancos em 2089. Na área da educação, por exemplo, é possível comemorar as reduções das diferenças entre negros e brancos em relação ao número de anos de estudo formal ou nos índices de analfabetismo.
A taxa de analfabetismo, em 1992, era de 10,6% para brancos e 25,7% para negros; em 2009, 5,94% para brancos e 13,42% para negros. Nesse período, embora tenha caído a desigualdade, a taxa dos negros permaneceu mais que duas vezes maior que a taxa da população branca, de acordo com dados do IBGE compilados pelo Ipea.
No caso das desigualdades de raça/cor, a taxa líquida de matrículas dos brancos e amarelos era 2,28 vezes maior que a dos afrodescendentes e indígenas. O primeiro grupo se apresenta com 29,4% de acesso à educação superior entre a população de 18 a 24 anos, enquanto o segundo apresenta menos da metade desse valor, apenas 12,9% (Inep, 2015).
PublicidadeReflexo da exclusão da juventude negra se revela de forma ainda mais assustadora quando verificamos os indicadores de mortalidade de jovens negros. Segundo o Mapa da Violência, editado pelo Ministério da Justiça e pelo Instituto Sangari, o número de brancos mortos vem diminuindo ao longo dos anos, enquanto os casos envolvendo negros aumentaram. Segundo o estudo, o número de jovens negros de 18 a 25 anos vítimas de homicídio foi 134% maior do que o de jovens brancos.
Os números são inquestionáveis e revelam a necessidade da ação cotidiana do poder público para promover a igualdade racial. Digo isso porque as ações afirmativas são indispensáveis para reversão desse quadro.
Na consagrada obra O capital no século XXI, Thomas Piketty afirma que “(…) a história da distribuição da riqueza jamais deixou de ser profundamente política, o que impede sua restrição aos mecanismos puramente econômicos”. Ou seja, reduzir desigualdades exige ações e decisões políticas nesse sentido. Piketty aponta que, ao longo da história, o posicionamento diante das desigualdades reflete o olhar e a correlação de forças entre os atores sociais nos campos político, social e econômico.
A história da desigualdade é moldada pela forma como os atores políticos, sociais e econômicos enxergam o que é justo e o que não é, assim como pela influência relativa de cada um desses atores e pelas escolhas coletivas que disso decorrem. Ou seja, ela é fruto da combinação, do jogo de forças, de todos os atores envolvidos. Portanto, pode-se inferir das teses de Piketty que a presença das condições de desigualdade em determinada sociedade, ou mesmo sua superação, pressupõe intencionalidade por parte dos atores sociais que a dirigem. O desenvolvimento econômico por si só não assegura que esta condição seja suplantada.
Vejam vocês, estamos vivendo um momento político de enormes incertezas, com fortes indícios de retrocesso na agenda política de promoção da igualdade racial. Mais do que nunca se faz necessário reafirmar essas políticas, em especial as ações afirmativas, que tem sido objeto preferencial do ataque conservador. Políticas como a implementação da lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, a cota para negros em concursos públicos e acesso à universidades, assim como a criação de uma Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial com status de ministério, foram fundamentais para iniciar uma trajetória de afirmação desse tipo de política.
As políticas universais que objetivam reduzir as desigualdades sociais são importantes, porém, são insuficientes para reduzir o abismo que separam negros e brancos. Quando se analisa a evolução dos negros no mercado de trabalho como um exemplo dos benefícios e limites das políticas universais, percebe-se que há uma aproximação recente entre a renda do trabalho auferida por negros e brancos, mas longe de significar o fim das desigualdades.
Os dados levantados pelo Ipea para o Boletim Políticas Sociais nº 19 mostram que os rendimentos médios reais da população negra recebidos de todas as fontes, cresceram 56% entre 1992 e 2009, ante um aumento de 39% entre os trabalhadores brancos. No entanto, a diferença entre uns e outros continua significativa: na década de 1990, o rendimento dos negros equivalia a 50% do dos brancos; há dois anos, esta proporção passou a 57%. Os limites são evidentes quando se analisa a possibilidade de mobilidade dos negros dentro do mercado de trabalho.
As políticas gerais não afetam a maneira como os afrodescendentes chegam ao mercado, nem como são tratados dentro dele. A estrutura do vínculo com cor e raça não muda. Hoje, os negros são maioria nos setores econômicos com as piores condições laborais – agricultura, construção civil e trabalhos domésticos – e também nas posições mais precárias, sendo a maioria entre os profissionais não remunerados e assalariados sem carteira.
Esse debate precisa ser feito porque está no centro da argumentação contrária às ações afirmativas. Um dos argumentos contrários ao estabelecimento de políticas reparadoras baseadas em quesitos raciais é de que a exclusão social no Brasil não é determinada pela cor da pele, mas pela pobreza. Este é um dos pontos levantados, por exemplo, na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), que questiona o sistema de cotas raciais no processo seletivo da Universidade de Brasília e que aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF).
Também se deve ressaltar que existem resultados intangíveis da implementação de ações afirmativas no Brasil. Sem sombra de dúvida, elas tiveram o mérito de colocar, definitivamente, a discriminação e o preconceito na no centro da agenda pública. As desigualdades de gênero e raça são estruturantes para a desigualdade social brasileira, produzindo efeitos negativos não apenas para estes grupos específicos, mas para a sociedade como um todo. Por isso devem receber a devida atenção do poder público.
Foi isso que tentamos, na Comissão de Educação, nesta semana, com a audiência pública para debater “Os Desafios e as perspectivas sobre a Promoção da Igualdade Racial na Educação”. Trouxemos para o centro da agenda desse colegiado a discussão sobre a promoção da igualdade racial. Queremos a nossa Comissão de Educação um espaço privilegiado de debate, articulação e luta!
Como nos ensinou Castro Alves: “A praça! A praça é do povo Como o céu é do condor”. Celebremos Zumbi, Dandara, Tereza de Benguela, Luiz Gama, José do Patrocínio, Dragão do Mar, Castro Alves, enfim, todos os heróis do passado e do presente que nos inspiram a lutar contra a injustiça e o preconceito!
* Deputado federal pelo PSB e presidente da Comissão de Educação da Câmara.
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